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Desfecho

Num daqueles dias em que as manhãs arrastam-se nas tardes e por fim se tornam noites, sem que nada de fato ocorra e sem que coisa nenhuma surja para romper a agonia e angústia, num daqueles dias que transcorrem durante meses sem início ou fim, no quais tudo a fazer é encher as idéias de álcool até que elas entorpeçam e sumam, sem deixar rastros, finalmente decidiu que a espera deveria cessar.

Não que esperasse por conta própria, pois a própria situação em que estava lhe deixava imóvel e, durante as semanas e meses que se passaram, não cansou de repetir que era impotente e estéril contra tudo aquilo, que nada poderia fazer.

Mas como que por ato de vontade decide arbitrar sobre o mundo, decidiu que era hoje o dia em que cessaria a espera. O marido sumira há exatos cinco meses e a comida acabara. Uma das crianças morrera de pneumonia e as outras que se amontoavam no quarto reclamavam a falta de comida. Ela precisava se agarrar na primeira chance, em qualquer chance que lhe aparecesse e tomar as rédeas da situação.

Não acreditava que ele pudesse ter fugido e abandonado ela e as crianças à própria sorte, à fome, ao maldizer público. Tampouco queria aceitar que estivesse morto.

Era uma noite agradável de um outono de 1912, e ela ainda lembrou que era primavera quando ele se fora, a época preferida dele.

Mas hoje tudo mudaria. Ela sabia. Receberia uma carta, ou chegaria alguém ali naquele fim de mundo afastado de tudo, com alguma notícia ou boa sorte. Ou má sorte mesmo, que seria melhor que a continuidade desse estado de estagnação. Alguma morte, alguma revolução, algum sangue ou martírio na noite, alguém que fora esfolado vivo nas vizinhanças ou morto a pedradas pela turba enlouquecida. Qualquer coisa, qualquer desgraça até, seria melhor que isso.

No quarto uma das crianças começara a chorar e ela gritou com mágoa e secura na voz. Ouviu ainda alguns murmúrios, e então tudo silenciou. As crianças, as paredes, os grilos, tudo ficou quieto demais para o gosto dela. Correu até a porta e viu se estavam todos bem. Estavam os cinco amontoados sobre um colchão de casal no chão, assustados demais para não fingirem que dormiam.

Fechou a porta e voltou à sala onde falava consigo. Um murmúrio indistinguível, alto apenas o suficiente para abafar aquele silêncio que vinha de fora. Aquele silêncio que tentava vir e se apoderar de tudo, como o novo senhor de uma casa abandonada.

Ela ouviu as botas na frente da porta de entrada e pode ouvir a batida antes mesmo que a desferissem. Uma, duas, três batidas secas na porta. A primeira coisa que lhe passou na cabeça foi fingir-se de morta, ficar quieta e esperar até que as batidas cessassem e as botas se fossem.

Mas a luz estava acesa e quem quer que estivesse na rua poderia perceber que ela estava acordada, que havia gente em casa. Pensou em ficar quieta até que o mundo acabasse e aquelas botas se fossem para longe. Ouviu novamente as três batidas, mais secas do que antes.

Hoje tudo ia acabar. Afastou-se para uma janela lateral onde a luz não chegava diretamente e tentou espiar da penumbra, para ver o intruso que chegava sem, no entanto, ser vista. Aproximou-se com cuidado e respiração ofegante. Temia que um grito lhe escapasse ou tropeçasse em objeto no caminho que lhe denunciasse a presença ali, naquela sala, ainda desperta.

Dali pôde ouvir novamente outras três batidas, ainda mais altas que das vezes anteriores. As plantas na entrada recobriam parcialmente o sujeito mas pôde, pelas botas, reconhecer que eram de seu cunhado, irmão do marido que há tanto se fora.

Ouviu ainda mais três batidas até que fosse até a porta. Abriu-lhe de ímpeto e perguntou, apressada:

--- E então?

--- Posso entrar? --- perguntou ele após um momento.

Ela indicou o caminho e ele entrou e sentou-se. E ela também sentou-se, embora não tivesse vontade, mas apenas por achar mais adequado, uma vez que ele também fizera o mesmo. Ele fez menção de falar algo e ela ansiosa pôs-se à espera, mas o silêncio que tanto a incomodava naquela noite ficara ainda mais alto e presente. Ele abriu a boca como quem tinha algo a dizer, mas em seguida calou-se.

--- E então? --- Insistiu novamente ela.

--- Acharam o corpo. --- Disse ele por fim, como se acabasse de concluir um longo e penoso discurso.


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