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Mortalha

Há coisas que, definitivamente, nos faz descobrirmos o inevitável: estamos velhos!

Sim, velhos e gastos, como a poeira que cobre a terra, puídos como as roupas com que se vestem as instituições. Nada com que não se acostume. Com o tempo, até mesmo a sensibilidade se torna insensível.

Sem rancores, sem melancolias ou saudades do passado. O passado é sempre tão árido e infrutífero quanto o futuro, sempre nos traz o remorso, enquanto o futuro a desesperança. Nada com que não se acostume. Nada com que não se habitue a tornar-se indiferente.

Sempre tive pesadelos com Ana. Sim, sempre tive medo de acordar, no meio da noite, atender o telefone e ouvir sua voz do outro lado. Não foi, de fato, minha primeira ex-mulher, mas prefiro pensar que assim foi e desconsiderar as que a precederam. Quando me casei pela segunda vez, achei que ia me livrar dos fantasmas, do passado. Descobri que não, e só ao me casar uma terceira vez compreendi que os fantasmas somente se aglomeram, cada vez mais e mais. Todo homem carrega um saco de ossos à suas costas.

Mas por que falar em ossos? É, de fato sou muito impressionável. A mera menção da morte já me faz desviar-me para assuntos mórbidos. Ana morreu. Sim, é isso, recebi a notícia hoje. Depois de tantos anos, já quase a havia esquecido, misturando o medo de revê-la ao mesmo medo de reencontrar todas aquelas que se seguiram. E, de repente, à toa, o telefone toca no meio da noite e eu acordo e atendo, como sempre acontecia nos pesadelos, mas quem estava lá do outro lado não era ela para atormentar-me, mas sim uma outra voz, comunicando o ocorrido.

Sem lágrimas. Amores mortos não merecem morrer novamente. Muito menos reviver. Óculos escuros, roupa preta. A morte traz em si toda uma estética, todo um prazer, atração. Sem rancores, sem medos, sem ódios. Somente o vazio é a única coisa que não consigo eliminar. O abismo vazio que se agiganta e se alimenta dentro de mim, devorando-me. Para o corvo chamado Poe, somente os olhos de um amante enlutado que chora a morte de sua amada poderia nos dar a visão correta da melancolia. Mas esse não era, com certeza o caso. Nesse caso, somente os olhos de um ex-amante enlutado que vacila sem reação ante à morte de sua ex-amada, poderia fornecer a visão correta do amargor.

E por que não uma festa? Por que não beber em homenagem a uma vadia, uma vadia que tornara felizes alguns poucos dos meus dias vivo? Por que não comparecer a seu velório e esmurrar no caixão o cadáver, até que tivesse toda a fronte desfigurada e a roupa desalinhada? Por que pensar nos mortos enquanto os vivos como eu, apodreciam esquecidos num canto qualquer do mundo, cheirando a bebida barata, cigarro idem, e trazendo nos pulsos as marcas dos anos. Marcas de gilete e desespero.

Mas estamos ficando velhos. Sim, é por isso. Esse é o único motivo pelo qual se vale a pena pensar na morte de uma ex-mulher. Um homem descobre que está velho quando sua primeira ex-mulher morre.

E eu que um dia fora imortal. Eu que fora imortal e vagara pelo mundo com ímpeto, com raiva, ódio, paixão, fome por justiça, sede por vingança. Eu que fora imortal e sonhara um dia com Xanadu e suas maravilhas.

Estamos velhos.

Há um martelo qualquer que começa a bater, a avisar que a coisa toda vai mal. Você ainda é jovem, parece jovem, se sente jovem, mas seu cabelo cai, seu fígado dá pequenas fisgadas, sua urina dói pra sair por causa de alguma doença mal curada, seu pulmão arranha o ar toda vez que você respira forte. Sua perna dói. Sua coluna dói. Sua cabeça dói. Seus olhos doem e seu nariz escorre, precisando ser assoado a cada quinze minutos.

Estamos velhos, porra!

Estamos velhos, e a idade e o mundo vêm cobrar seu preço, sua vingança pelo sangue que você um dia bebeu, e precisa agora devolver em dobro. Não sei se a amava, se amei ou amaria qualquer dia, ou sempre. Mas nesse momento tudo que eu queria era algo que me desse a certeza de que um dia eu havia a amado muito. Qualquer prova que me dissesse que eu havia amado aquela mulher e precisava dela, e poderia ter sido feliz ou ao menos tentado sê-lo ao lado dela. Qualquer coisa. Qualquer coisa! Menos aquele vazio que rastejava como um gigante, lutando contra minhas serpentes, derrotando-me justo no campo onde sempre fui mais frágil: eu mesmo.

Estamos velhos. E cada ano que passa não são mais anos, mas mero registro de um tempo que não foi nada daquilo que poderia ter sido. Cada tempo é perdido, todo sonho é desfeito. No fim do túnel só resta dor, dor e escuro. Não há luzes quando se chega ao fim.

Por fim um sapo morno vem lamber nossa cara e pedir, me lamba também! Acordamos nu em uma loja de conveniência tentando gritar, mas é só um sonho dentro de um sonho. Acordamos dentro de outro sonho em que estamos presos numa geladeira, congelando, sufocando sem ar. Acordamos dentro de outro sonho em que uma bela mulher lhe sorri e lhe abana, enquanto você, impotente, tenta em vão gritar algo da cadeira de rodas da qual não consegue sair. Estamos velhos, e nada mais assusta, nada mais amedronta, porque conhecemos o medo e aprendemos a viver com ele, aprendemos a precisar dele.

Aprendemos a gostar da morte e desejar que sua mão suave nos venha levar, na hora exata. Aprendemos a morrer e viver em função de uma morte que nunca vem, nunca se completa, nunca se realiza. Aprendemos a sonhar e chorar por vermos nossos sonhos se desmancharem ao acordarmos, e aprendemos a temer os monstros infantis que nossos pais criaram para nos educar. Pequenos fantasmas, que invés de sumir se acumulam toda uma vida.

Peguei uma foto de Ana. Antiga, borrada. Ainda guardada e esquecida num canto, embora não tivesse valor mais pra mim. Penso em queimá-la. Queimá-la, uma vez que a pessoa que ela refletia agora não mais existe, não mais pode ser refletida. Mas me pego pensando se a foto é um reflexo daquilo que ela foi, ou apenas um resquício de algo de mim. Tenho medo de queimar a mim mesmo.

Estamos velhos. Estamos gastos. E se não há tempo mais para amar e viver, que se seja permitido ainda um último sonhar ou chorar. Que se permita ao menos degustar o uísque antes de enfim engoli-lo. Que se permita temperar a comida, saborear o fumo, apreciar o calor e dar um último soco num filho da puta burguês, dono de fábrica, de banco ou governante.

Que se possa poder algo antes que todas as liberdades sejam cerceadas. Que se possa, enfim, chorar uma única lágrima ao menos, mesmo por uma dor há muito morrida.

E que se envergonhe aquele que pensar mal disto.


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