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Outra noite insone

Outro dia minha ex-mulher ligou. De novo. Dia não, porque era cerca de três horas da manhã, enquanto eu esvaziava uma garrafa de martini ao lado da cama, na vã esperança de esvaziar com isso meus pensamentos também.

Mas não sei porque lembrei disso agora. Deve ser porque esse maldito bar está fechando, e logo terei que ir pra casa, encarar novamente a insônia. Sei que me ligou chorando:

--- Anaca?

--- Han, eu... quem fala?

--- Patrícia.

Um silêncio ficou bailando na linha telefônica por alguns eternos segundos. Pude ouvir que sua respiração era alterada, e a voz de bêbada. Quando estávamos juntos vivíamos brigando, brigando e bêbados. O zumbido da linha telefônica começava a parecer uma porra de trenzinho elétrico gigante, vindo para mim. Cortei aquele silêncio:

--- Você está bem?

--- Você me ama, Anaca? Você me ama ainda?

--- Claro benzinho. Foi você quem me chutou, lembra?

--- Eu sou má demais não?

--- Não, meu amor, só confusa, nada mais. É normal.

--- Você...

--- Eu o quê? Fala.

--- Você me discrimina porque sou alcoólatra, não?

--- Claro que não Patrícia, você sabe que não?

--- Não mesmo?

--- Eu te amo, tá?

--- Tá... Um beijo.

--- Outro. Tchau.

Desligamos. Patrícia era a última pessoa no mundo que eu queria ver ou com quem falar, sempre fora uma jogadora, sempre seria. O que quer que tivéssemos tido ou sentido um pelo outro, estava definitivamente morto e enterrado. Não poderia simplesmente explicar porque ainda assim a tolerava me ligando de madrugada, uma vez por mês sempre. Talvez porque nada mais fizesse diferença agora, tirando o orgulho, nada mais podia importar naquela situação, e orgulho era uma doença que há muito tempo não me atacava. Acredito que o faço simplesmente porque o mundo é uma grande merda mesmo, um grande balde que cada vez mais transborda e machuca, e não me custava nada dar um pouco de alívio a alguém que um dia me fizera muito feliz mesmo, antes de me fazer tão profundamente triste. Sublimação, era como eu chamava isso, quando a ação e a não-ação perdem o sentido de existir, quando deixamos nos guiar pelo mero absurdo.

Mas, no fundo, não fazia diferença mesmo. A esse horário estou sempre acordado, mesmo que queira dormir. Por isso venho sempre aqui. Agora há pouco, tinha um chato bebendo e alugando todo mundo. Babou na minha camisa, disse que já foi preso três vezes, e que numa dessas vezes fora currado por quatro caras. Quando tentei consolá-lo, se irritou, e começou a berrar:

--- Eu sou macho. Sou mais macho que qualquer um aqui, e não é porque uns marmanjos aí comeram meu cu que vou deixar de sê-lo. Quatro caras! Quatro caras que me encostaram num canto e me deram seis curradas consecutivas. Sim, seis! Seis!

E baixando o tom de voz, confidenciou-me: "É, seis, amigo, seis! E isso é que é o pior, que alguém te curre, tudo bem, o pior é quando algum espertinho entra na fila duas vezes."

Senti pena, o que não me impediu de desvencilhar-me. O dono do bar o obrigou a pagar a conta e ele se foi. Confesso que não concordo com a lógica dele. Não concordo porra nenhuma com o tipo de lógica que ele tinha, mas isso é normal: também nunca consegui concordar com a lógica da maioria das pessoas que acreditam em deus, nem da lógica dos milhares de pobres coitados que vão às urnas eleger seus carrascos, a grande fachada da dominação burguesa. Todos iguais, todos belamente humanos, mas com suas lógicas completamente insuportáveis para mim.

Mas, repare bem, tá vendo aquele sujeito ali no canto, bebendo sozinho. Ele tá assim estranho desde que esse sujeito berrou tais coisas. O cara sempre foi assim, meio calado. Conheço ele desde os quinze anos, e ele já era assim. O apelido dele é Sabugo. É um apelido meio incomum, concordo, mas sempre estranhei que isso parecesse perturbar ele tanto. E não há nesse bairro quem não o conheça por Sabugo, apenas poucos sabem qual é mesmo seu nome. Só fui descobrir o porque do apelido uns três anos depois de conhecê-lo, e eis porque ele ficou assim perturbado com a história do sujeito.

Sabugo era um garoto normal até os dez anos. Nem tinha largado a escola ainda. Um dia, voltando da aula, um cara deu-lhe uma porrada, desmaiando-o, e o arrastou logo em seguida praquele matagal que ficava nos fundos do cemitério municipal. Quando o garoto voltou a si, o cara tinha amarrado os pulsos dele com arame, rasgado a camisa dele e enfiado na boca dele para que não pudesse gritar. O guri começou a se debater desesperado, sem entender ainda o que ia acontecer, mas já com muito medo. O cara o forçou a ficar de quatro e arriou as calças do guri. Viu que o cu do guri era estreito, não ia dar, e daí pegou um sabugo de milho que catara do chão, e enfiou rasgando até o fim do cu do menino, que já quase desmaiava de dor. Forçou bem, até ter certeza de que o guri já não estava mais tão estreito, e só então tirou o sabugo e o currou.

Só à noite a polícia encontrou o garoto, ainda no mesmo terreno. Não se sabe se foi pela polícia ou pelos próprios pais do garoto, mas a história acabou vazando e chegando nos coleguinhas dele, que, ainda que não entendessem o que significava aquilo tudo, acharam a história engraçada e acabaram apelidando-o de Sabugo, apelido que o perseguiu a vida inteira e se mantém até hoje.

Mas isso são histórias, esqueletos no armário. Veja, parece que ele se levanta e vai embora. É sempre assim. Toda noite ele vem, toma meia garrafa de cachaça, suspira e vai embora, como se o peso do mundo lhe curvasse os ombros. O Zé das Cabras você já conhece, eu sei, ele também ganhou esse apelido quando era criança. Até hoje ainda se gaba de suas proezas sexuais no sítio antes de vir pra cidade, afirma categórico que não havia cabra que houvesse lhe escapado da volúpia sexual juvenil.

Histórias, como eu disse. Esqueça isso. É, esqueça isso, antes que você acabe ficando sem sono como eu, se revirando na cama até que o despertador toque ao meio dia, avisando que você vai passar mais um dia de enjôo e dificuldades de respirar, devido a noite não dormida. É, é melhor esquecer, assim você pode se juntar aos outro humanos que dormem tranqüilos em suas casas, sem perceber o mundo ao seu redor, sem perceber a dor que permeia a existência humana, sem perceber a beleza nas pequenas coisas, nas pequenas revoluções que podemos fazer, desde uma greve de operários até uma discussão familiar, pequenos atos de rebeldia e resistência ao idiotismo contagiante do mundo.

Melhor esquecer. São apenas histórias, como eu disse, são pessoas, ninguém liga mesmo para as pessoas.


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