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Das muitas razões da loucura

"merda é merda, não tem nome", já diria um amigo meu, dono do franco's, um bar especializado m comida francesa e banda de garagem que eu freqüentava. E eu sempre soube que ele se referia a muito mais coisa quando se referia a isso. A vida de pelo menos cinco dos seis bilhões de humanos vivos, por exemplo.

Digo isso por causa de um narguilê. Comprei-o de um árabe que tinha uma lojinha na cidade, a tenda do Abdul Al-Hazred. Embora o nome fosse chupado de Lovecraft, achei que a compra seria um bom presságio. Até o episódio do índio.

Botei a água no jarro azul do narguilê e o carvão e fumo nas partes devidas. Não lembro de ter feito nada errado, de forma que não sei porque acabei vendo o tal do índio. Talvez eu não devesse ter aproveitado a promoção de vinho, mas acabara de descobrir que o vinho uruguaio era tão bom quanto o chileno, ou talvez fosse a dúzia de latinhas de cerveja que eu tomara antes. Não importa.

O que importa é que acabei dormindo e sonhando com o velho índio. Ele me contou a história de um viajante que andava até uma bifurcação. Indeciso, ele escolhia um caminho, que depois de muito andar chegava num ponto sem continuação. Depois de andar dias ele volta à bifurcação e toma outro caminho. O índio cochila no meio da história e, quando acorda, me conta que depois de muito andar o índio descobre que o outro caminho também não dava em nada.

Fiquei puto com o índio. Passei dias, quem sabe meses pensando naquilo quando consegui me concentrar e sonhar de novo. Lá estava ele, com cara de quem sabe mais do que aparenta. Perguntei o que afinal ele quisera dizer com a história e ele disse:

--- Nada. É só uma velha história.

--- O caralho! Essa história não acaba assim. Tem que ter algo mais.

O índio pitou seu cachimbo e assentiu com a cabeça.

--- É... tem.

--- E então?

--- Então o quê?

--- Qual a moral da história?

O índio pitou de novo. Deu uma coçada na cabeça da cobra. Por fim disse:

--- Sabe, filho. Às vezes estamos fudidos. E é isso. Não tem outro caminho. Para qualquer lado que o viajante vá o resultado é o mesmo. Ele vai se fuder.

E com uma risada intoxicada do cachimbo o sonho acabou.

Por muito tempo resolvi esquecer o índio velho. E foi quando soube que Clara havia morrido que me lembrei dele de novo. Clara era uns trinta anos mais velha que eu e me dava quinze cruzeiros, o que hoje em dia não significa mais nada em termos de valor, para cada vez que eu a visitasse. Era uma velha viúva que morava no alto da rua e que não hesitava em pagar sessenta cruzeiros por mês para ter um pouco de satisfação sexual semanal com um rapazinho adolescente como eu era. Ela tinha uma doença que fazia os ossos apodrecerem e teve uma morte difícil, dolorida.

No fundo, era disso, eu achei, que o índio falava. Eu podia ter ou não comido a velha, que não faria diferença. Ela teria a mesma morte sofrida. E eu podia ter ou não comido a velha, que no fim morreria do mesmo jeito. Podia votar num candidato de esquerda ou direita, que o governo seria igual, pois governo é sempre governo. Podia ter ou não dado leite pro meu cachorro quando ele tinha um mês, que acabaria morrendo enforcado num galho de árvore do mesmo jeito. Escolhas podiam fazer diferença, mas quer as borboletas batessem ou não as asas, os furacões continuariam acontecendo.

Tirei o narguilê velho do armário. Acendi e lá estava o índio. Ele ria pra mi quando lhe dei um soco e acordei. Ainda assim, nada havia mudado.


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