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Sangue seco

Eram raras as vezes em que eu conseguia comer sem que me doesse o estômago. Morava na frente de uma farmácia 24 horas, mas preferia agüentar a dor e economizar o dinheiro de remédios para comprar mais bebida. Perto de casa, lanchonetes inundavam a avenida com sua gordura preguiçosa, destinada a atrair jovens preguiçosos como eu, que moravam sozinho e tinham dificuldades em se animar a preparar qualquer coisa para comer.

Lá, nas lanchonetes, havia algo a mais que em casa eu também não tinha: cerveja. Não que eu não pudesse comprar cerveja para guardá-la em casa, não só podia como era isso mesmo que eu fazia constantemente. Mas por mais que eu me esforçasse em encher a geladeira de bebidas, o esforço de esvaziá-la era, em geral, mais rápido e mais fácil. Os amigos também ajudavam. Às vezes vinham e enchiam-na exageradamente de coisas, deixando me as felizes sobras, ou, pelo contrário, a encontravam cheia para esvaziá-la.

Sempre bebida.

Eu decidira ser um escritor, mas enquanto isso não acontecia eu ganhava tempo estudando e fazendo pequenos trabalhos de diagramação. Bicos. Tinha muito tempo para ler e escrever, mas acabava preenchendo a maior parte dele com bebida, mulher e amigos.

A vida era fácil. O sol era quente no verão e minha casa insuportavelmente úmida no inverno. Eu adoecia fácil e tinha raiva do mundo e raiva de mim mesmo por ser menor e mais fraco que o resto do mundo. Eu estava perdendo o jogo e não havia nada que eu pudesse fazer para evitar. Minha mulher me visitava dia sim, dia não, o que era uma benção pra mim e terminava com o maior motivo de obsessão que eu tinha: mulher. Tirando as pessoas mais próximas de mim, procurava evitar contato humano. Colegas de aula, de trabalho, família, vinhos. Com todos eu mantinha uma relação cordial e distanciada, evitando os convites para sair sempre dizendo: "Você conhece minha casa. Apareça lá um dia e vamos beber." Mas quando a madrugada avançava, a bebida avançava e a angústia aumentava, as pessoas que me visitavam logo se sentiam mal e iam embora, ou dormiam num canto à espera do primeiro ônibus da manhã. Eu não era companhia saudável. Pensava demais, bebia demais, sentia demais e nunca deixava que me conhecessem realmente. Eu raramente compartilhava a dor que me movia no mundo, e geralmente as pessoas desistiam de me ver antes que eu o fizesse.

A amnésia alcóolica me impediria pra sempre de escrever qualquer tipo de romance de memórias, isso eu sabia, e na ressaca matinal eu escrevia com dor e sinceridade, fragmentos de realidade e fantasia alucinada, das quais nunca conseguia distinguir uma da outra. Eu conseguira uma bolsa na universidade que me permitia pesquisar sobre literatura e sempre que viajava para alguma cidade eu corria atrás de livros de Bukowski e Fante e Wolff e Marx.

Um dia consegui uma grana boa e disse à minha mulherzinha: "mulherzinha, amor, vamos viajar", "viajar?", "é vamos pro Rio. Vamos viajar em lua de mel.", "lua de mel? a gente não casou.", "não, não casou, mas isso não importa. Vamos pra lua de mel mesmo assim."

Um mês depois pegamos o ônibus quente que sacolejou por vinte horas até o Rio. A cidade era quente e úmida e cheia e fedia, e isso tudo me fazia amá-la e odiá-la. O hotel encrencou por ela ser menor de idade, mas acabou deixando. Eu tinha vinte e cinco anos e ela tinha dezessete. Oito a mais. Uma semana depois voltamos pra ilha do desterro, onde morávamos, com vinte livros a mais na mala na mala e quatrocentos pilas a menos no banco.

Desterro era o lugar onde morávamos. E eu que nunca pertencera a lugar algum, percebia cada vez mais que também não pertencia àquele lugar. Talvez fosse assim com todos. Todos ali eram invasores, pessoas vindas de outra terra em busca de um pouco de sol e vida fácil, um local com quatro estações por ano que não era ainda grande demais. E quanto mais eu percebia que não pertencia a ali, mais aquilo tudo me cercava, me envolvia e me prendia. Eu era um desterrado também. Primeiro foi a casa. Depois o curso. Depois os amigos. Depois mulher. Cada ano passava e eu, sem notar, apertava mais um laço nos grilhões que me prendiam ali.

Era um fevereiro de 2001, eu tinha vinte e cinco, quando toca o telefone. Era domingo.

--- Alô?

--- Alô. Anacreonte?

--- Sim.

--- Aqui é Gastão Fontelli. Estou ligando pra avisar que seu ingresso pro camarote tá confirmado. O desfile de carnaval começa às dez horas da noite.

--- Ah, tá. Obrigado.

Desliguei logo antes que mais detalhes surgissem na conversa. Puta merda, carnaval. Me acordar de manhã pra isso. Com certeza era um trote que alguém fizera comigo. Voltei a dormir fazendo planos para descobrir quem tinha bolado o trote e como me vingar.

Era terça feira já quando o telefone me acordou novamente, perto das três meia da tarde. Eu andara bebendo desde domingo na casa de amigos, não lembrava muita coisa. O tal de Gastão tinha simplesmente evaporado de minhas lembranças.

--- Alô?

--- Alô, Anacreonte?

A voz no outro lado da linha era rouca e arrastada, mostrando que eu não era o único de ressaca naquela conversa.

--- Sim?

--- É o Gastão Fontelli, tudo bem?

Minha boca estava seca e o estômago ardia por causa dos charutos de noventa centavos que eu fumara na noite anterior, por isso deixei que ele falasse livremente, procurando não interromper.

--- Tô ligando pra agradecer a presença de vocês no camarote. Foi muito legal. Escuta, desculpa por eu não ter ficado muito tempo junto, é que tava aquela correria, você viu né, e eu tinha tanta coisa pra fazer na organização que acabei nem atendendo vocês direito. Não sei se vocês puderam (em casa - Aléphico, 28 fevereiro - pausa das 3:30 am as 4h am por dor no estomago de charuto e vinho) filmar direito. Eu tô ainda com a maricota gigante, não sei se vocês conseguiram filmar bem ela e se vocês quiserem marcar uma hora a gente pode tirar umas fotos e pegar umas cenas delas porque ...

--- Só que tem um problema. Eu não sou da tevê.

--- Não...

Um silêncio de constrangimento vinha do outro lado da linha, cortado pelo constante zumbido da ligação.

--- Você não é do canal sete?

--- Não.

--- Espera um pouco. É que tem um recado aqui. Você não é o Anacreonte Fonjic?

--- Sou.

--- E você não é do canal sete?

--- Não. Eu dei uma entrevista no canal sete, mas não tenho nada a ver com eles.

--- Peraí... eu tenho aqui um recado "Anacreonte Fonjic, editor da revista 'Le Bimbot' canal sete, 22 horas".

--- Talvez seja o horário em que a emissora passou o programa. "Le Bimbot" é a revista revista que eu edito.

--- Acho que houve um mal entendido por aqui, mas mesmo assim eu te ligo daqui a pouco. É revista de que?

--- Literária.

--- Ah tá. Eu vou perguntar pra minha mulher sobre isso e depois te ligo. Você conhece a Joseana Fontelli?

--- Não.

--- É minha mulher. Vou tentar falar com ela e depois te ligo. Ela que me passou o contato, mas talvez seja pra outro projeto. Até mais.

--- Até.mais.

A coisa era mais complicada do que parecia. Televisão, carnaval, projetos. De onde diabos esse povo tinha tirado meu telefone. Talvez fosse uma grande conspiração contra mim. Maçons ou vigília anticomunista, sei lá. Mas alguma merda estava me rondando, já fazia tempo. De qualquer forma, eu pretendia me manter longe.

Alonzo, escritor local amigo meu, caíra na armadilha. Trabalhava no governo estadual mais reacionário do país, edalava em Che Guevara e um dia me ligou e convidou pro lançamento doe algo. Perguntei a ele porque ele trabalhava pra direita e ele disse: "porra! tô trabalhando. Tô fazendo algo honesto e inovador". De qualquer forma aquele não era meu ambiente. Tomei os uísques de graça e quando as autoridades começaram a discursar dei o fora. Ele tinha filhos, esposa, essas coisas, e o sistema já havia se apoderado dele, do talento dele. John Fante fora engolido pela indústria de cultura enlatada também, que o matou depois de ter lhe amputado as duas pernas e levado a visão. Eu sentia que o monstro mundo fechava seu cerco ao meu redor, dizia "isso é a fama, nos dê seu trabalho, seu nome, sua dignidade". E eu, por algum estranho motivo, preferia ser um idiota falido a isso. Na quarta feira choveu. Com a chuva veio um pouco de frio e minha mulher veio me ver. Passamos o dia todo debaixo do cobertor, calados.

Era março quando o telefone me acordou de novo.

--- Anacreonte?

--- Fala...

--- Aqui é Gastão Fontelli, lembra de mim?

--- Não.

--- Do projeto literário. Não cheguei a te explicar?

--- Não.

--- Olha, eu tô com um patrocinador aqui num bar do centro. Ele quer conhecer o editor do projeto, você pode vir aqui agora?

--- Agora, que horas são?

--- Nove e meia. A gente tá tomando uma cachaça porque ele insiste que essa é a melhor maneira de abrir o apetite pro almoço. Seria muito importante que você viesse, ele é dono de boa parte das empresas estaduais que foram privatizadas ano passado.

Lembrei da conta de luz e da conta de telefone que haviam dobrado de preço ano passado. Foi o que o governo chamou de Saneamento de Contas para a Competição no Mercado Privado, que na prática significava Aumento Extorsivo de Tarifas para Atrair Interesse do Capital Privado. Aí o governo fazia o troço dar lucros exorbitantes, emprestava dinheiro prum ricaço qualquer, que comprava a empresa e já saía lucrando no primeiro mês sem fazer nada, tendo dez anos pra pagar o assim chamado empréstimo. Tive vontade de mandar ambos a puta que pariu, mas nem deu tempo. Gastão me passou o endereço de um bar no mercado público, no centro, e desligou. Voltei a dormir.

Era julho quando ia passando por uma banca de revista e uma publicação me chamou a atenção. Uma capa amarela anunciava o primeiro número da revista "O cão que bale". Folheei a capa e fiquei pálido, quase a ponto de desmaiar, quando vi meu nome no expediente como editor. Comecei a passar mal. Uma dor forte que me subia pelo estômago e corroía. Folheei rapidamente para concluir que a maioria do material eram poemas de péssima qualidade, feitos por membros de uma tal de "Associação dos Poetas da Felicidade". O jornaleiro viu meu estado e me ofereceu o banco em que estava para que eu sentasse. Agradeci e sentei, culpando o tempo chuvoso e frio por aquele mal estar.

Tive vontade de chorar. Aí senti vergonha. Aí senti raiva. Aí senti revolta e, por fim, impotência. Estava ali, "Editor: Anacreonte Fonjic".

Comprei a revista e fugi pra casa. Deitei na cama suando frio embaixo de um cobertor e fiquei remoendo a raiva até que uma idéia surgisse. Quinze minutos depois levantei num pulo, peguei a revista e disquei para o número da redação que estava no expediente. Uma voz familiar atendeu o telefone.

--- Alô?

--- Alô, que está aí?

--- Aqui é Gastão Fontelli.

--- Gastão. É o Anacreonte.

--- Anacreonte! Ligou bem a tempo rapaz. Tô precisando dos teus dados bancários pra depositar teus salários atrasados.

--- Que salários atrasados. Eu não tô trabalhando.

--- Escuta. Consegui fechar acordo com o patrocinador. Inclusive a filha dele publicou alguns poemas na revista. O primeiro número tá nas bancas e pelo contrato já estamos recebendo desde abril.

--- Eu não quero saber de nada. Quero saber como meu nome foi parar nisso.

--- Escuta, depois passa aqui pra gente conversar melhor. Esse primeiro número foi meio atropelado e não deu pra falar contigo. Assim que você passar teu dados eu deposito os nove mil.

--- Nove mil?

--- É, são os três meses de salário que tu ainda não recebeu. Depois passa aqui e a gente se fala melhor. O contrato é de três anos.

Depois disso ele pediu desculpas pela pressa e desligou. Fiquei furioso e tentei ligar de novo mas o telefone estava ocupado. Tentei por mais de uma hora, e sempre ocupado.

Talvez eu pudesse comprar tudo. Era isso. Vendia algumas coisas que tinha, meus livros, Cd`s e comprava tudo. Ninguém ia ler. Depois fazia uma grande fogueira e queimava. Fiz as contas e vi que precisaria de uns doze mil pra isso. Loucura, jamais arranjaria tanta grana assim. E a essa altura muitos exemplares já teriam sido vendidos. Ou dados, distribuídos.

Comecei a pensar em me matar. Chorei pensando em minha mulherzinha chegando em casa para me visitar e encontrado meu corpo ensangüentado. Chorei pensando em minha mãe e meu pai recebendo a notícia do filho mais novo morto. Chorei pensando na dor dos amigos tomando porres e fazendo discursos chorosos no enterro. Chorei com raiva ao pensar na figura de um padre rezando no velório e sentei para começar a escrever um nota de suicídio. Deixaria para todas os motivos exatos do meu suicídio e as medidas que deveriam ser tomadas. Principalmente a indicação de que não deveriam haver padres ou qualquer outro tipo de cerimônia religiosa celebrando minha morte.

Sentei na frente do papel e decidi que tinha que decidir como ia me matar antes de escrever a nota. Afinal, de que adiantaria pedir para ser enterrado se eu fosse me prender um peso e me lançar no mar em local desconhecido, ou pedir que doassem meu fígado para ser analisado por estudantes de medicina se meu corpo só fosse encontrado dias depois já apodrecido. Comecei a listar mentalmente as formas como poderia me matar. Fogo. Veneno. Gás. Produto de limpeza. Tanque com ácido. Afogamento. Tiro de revólver.

Tiro de revólver. É claro. A idéia me vinha agora à mente com facilidade e lucidez impressionante. Catei do chão a revista já toda amassada, peguei na gaveta o revólver antiquíssimo que eu herdara de meu avô (talvez nem funcionasse mais) e saí correndo porta afora pro endereço da redação.

O prédio era no centro. Uma sala comercial, sem nada demais. Girei a maçaneta e a porta deslizou fácil. Entrei numa sala apertada. Atrás de uma mesa bagunçada, um homem falava ao telefone, de costas pra porta. Reconheci a voz. "Gastão Fontelli", eu disse. O homem irou a cadeira e me olhou sorrindo. Eu segurava a revista surrada numa das mãos e a arma estava oculta nas costas, presa à cintura. Ele pediu desculpas à pessoas com quem falava e desligou o telefone. Eu suava. Abriu um sorriso e disse:

--- Anacreonte, que bom vê-lo pessoalmente. Venho tentando te conhecer mas parece que a fama já te alcançou. É difícil te encontrar, hein? Mas sabia que você viria. Temos uma longa parceria pela frente.

--- Não, não temos, não Gastão. Quero que voc6e me tire desse seu projeto maluco, já.

--- Calma aí garoto.

--- E tem mais. Quero que voc6e recolha todas as revistas, cada uma, cada coisa que tiver meu nome nela e destrua.

--- Relaxa garoto. Vai um uísque? Acho que você ainda não entendeu direito. São três mil pilas por mês. Limpinho, já descontado o imposto.

--- Não, Gastão, você que não está me entendendo...

Saquei o revólver da cintura e apontei pra ele. Tudo parecia acontecer devagar agora, como se eu tivesse parado o tempo. Falei com calma enquanto observava a expressão de pânico no rosto dele e os pontos de ferrugem que empestavam o metal.

--- ... você vai recolher cada revista sua que tiver meu nome, destruir tudo, e nunca mais incluir meu nome em qualquer coisa que você faça. Está claro.

Gastão olhou para o lado, como se esperasse alguma ajuda ou resposta. Na parede lateral da sala, um grande espelho refletia essa cena de bangue bangue de baixo orçamento. Passei o revólver pra mão esquerda, apanhei com a mão livre um grampeador em cima da mesa e atirei com força. O espelho estilhaçou, revelando uma câmara escura onde três ou quatro pessoas me olhavam tensas, cercadas de computadors, camêras, leds, gravadores e outras parafernálias. Olhei tudo aquilo por alguns momentos como se tivesse sido transportado por um momento para alguma história em quadrinhos de ficção científica. Como se a qualquer momento um disco voador fosse pousar e um clone meu descer, enquanto os demais na sala tirariam seus disfarces revelando-se criaturas bestiais do espaço além. Senti uma forte dor na nuca, uma pancada e apaguei.

Acordei nesta sala branca. Passo a maior parte do dia trancado e sedado, amarrado nessa camisa de lona. Lá fora há um jardim bonito e não tenho a menor idéia de aonde estou. Se ainda estou no Desterro, em Santa Catarina ou até mesmo Brasil. Será que os alienígenas me carregaram pra outro mundo? Mas que alienígenas? Tudo que havia eram apenas homens assustados segurando suas xícaras de café no escuro. Bom e velho café fumegante.

Me deram um outro nome. Há uma ficha minha que os homens vestidos de médicos carregam e lá consta "Marcelo de Souza". No campo do diagnóstico há uma linha escrita à mão que diz "Esquizofrênico, psicótico, de comportamento alterável e violento. Perigoso."

Pedi que me trouxessem algo para ler ou fazer, o que me foi negado. Uma vez por mês me soltam da camisa e me trazem o exemplar do mês de "O cão que bale". Eu abro o expediente e vejo lá, "Editor: Anacreonte Fonjic". Dentro estão os mesmos autores de sempre, com poemas sempre piores. Me enfureço e começo a berrar e rasgar a revista, até que eles entram, me sedam e me amarram, para me soltar de novo somente no mês seguinte, quando o próximo número de "O cão que bale" sai.


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