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Mais um caso de loucura sem rosto perdida entre milhares

Eu devia ter entre uns dez ou treze anos. Provavelmente mais pra perto dos treze, quando mulher já tinha algum significado físico.

Era uma louca no ponto de ônibus. Olhava a esmo, agitada, num dia de chuva e parecia muito aflita. Reclamava de isso ou aquilo com as pessoas, falava sozinha, inquietava a todos que ali esperavam o ônibus atrasado. Era como o rosto da morte a explorar as fraquezas de cada um.

A minha sempre fora a carne, e já naquela idade se manifestava. Eu não tinha noção exata do que, mas sabia que queria ir junto com aquela mulher. Sabia que queria chegar com ela em um lugar quente e seco, para que tirássemos nossas roupas molhadas. Até aí as coisas eram bem claras, minhas intenções e motivações. A partir daí é que a coisa complicava um pouco.

Ela era bela, a seu modo. Olhos claros, cabelos curtos, calças enterradas na bunda. Mas não fora nada disso que me atraíra nela. Para mim, era até esse ponto só mais uma louca perdida no ponto de ônibus... e gostosa. Mas mulheres gostosas existem aos milhares numa ilha turística e loucos existem também aos milhares em qualquer capital brasileira. Gente que vaga a esmo em busca de algo que lhes foi subtraído, sem ao menos saberem o que.

Foi que em meio da loucura dela eu senti que havia algo que nos juntava impositivamente. Algum trecho, fragmento de devaneio dela, algo qualquer coisa. Eu não sabia. Sabia apenas que o corpo pulsava, os ouvidos pulsavam, o pulmão pulsava, o músculo pélvico pulsava.

Aproximei-me para ouvir a conversa ou, ao menos, conseguir passar-lhe a mão nas partes íntimas, o que já valeria o dia. Em meio a isso a ouvi dizer que era escritora.

Era isso, éramos iguais, colegas de profissão por natureza. Eu, em toda a pretensão de alguém que nem se libertou da infância, já queria escrever. Puxei papo com ela e de início ela me ignorou. Mas entrei no jogo da loucura, concordava com ela, ressaltava pontos, colocava a palavra certa no lugar certo. Andava meus passos amadores num terreno que precisaria desbravar no futuro, o de mentir convincentemente para a mulher que se deseja agarrar em curto espaço de tempo.

Mas não precisava de muita mentira. Pois era fato que em tudo eu concordava com ela. Mesmo nas coisas que eu não concordava eu passava a concordar. Ela era a escritora. Ela era a grande vulva. Ela era a louca. Ela era tudo que um rapaz pode querer no início da adolescência.

Não sei o que uma mulher de dezoito iria querer com uma criança de treze, mas o fato é que meu papo colou. Grudou-se perto de mim a desabafar seus problemas íntimos, suas depressões, seus dramas, o barulho terrível que as crianças faziam na rua em frente a sua casa e não lhe deixavam escrever. E ela precisava de cada minuto de silêncio para concentrar-se e escrever. E ela botava a cabeça na grade e gritava histérica xingando e amaldiçoando as crianças da rua até que elas, assustadas, se movessem para a quadra adiante, ou fossem chamados para dentro de casa pelos pais que queriam evitar o contato com a louca.

Algo havia grudado. Eu não sabia explicar. Algo no olhar dela que me fazia olhá-la. O mesmo algo que a obrigava a olhar-me e grudar-se a mim. Uma excitação febril, que me fazia antever cada palavra dela, cada passo, cada acontecimento e, antecipando-me, impor-me.

Veio então o ônibus dela. E eu torcia que fosse o mesmo meu, mas não, era para o bairro ao lado. Se eu tomasse aquele ônibus, teria que andar meia hora depois para ir para casa. E me atrasaria muito sem saber como me explicar pelo atraso. E ela subiu no ônibus e ficou a me olhar e eu perdido entre minha ereção e a necessidade de uma decisão rápida. Vi o ônibus partir e fechar as portas e me acordar daquele sonho estranho em que eu sabia que devia ter dito foda-se ao mundo e embarcado.

Não. Sinto frustrar-vos. Essa não é uma história picante sobre sexo na pré-adolescência. É só mais uma cotidiana e corriqueira história de fracasso, de perda de oportunidades, de chances desperdiçadas. E por mais que eu tenha pelo resto da vida me torturado por aquele momento, por aquela estranha que nunca comi, ao menos me serviu de alerta para a efemeridade dos momentos. Daquele dia em diante muitas vezes entrei em ônibus errados e situações desagradáveis por causa de mulheres. E por muitas vezes me dei muito mal e peguei doenças desagradáveis e parei em lugares estranhos sem chegar a comer ninguém. Algumas poucas vezes funcionou. Mas isso ao menos me ensinou algo sobre o mundo: a derrota é a regra, é 99% das situações, o sucesso é a exceção. A história de qualquer vida não é outra senão a história de sucessivos fracassos. E se uma história contada diferir disso, é assim que se descobre uma mentira.


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