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Nem só no outono morrem as folhas

Ainda tinha sangue fresco nas cuecas quando passei com medo pela frente do posto policial. Não que eu tivesse medo deles, eles eram estáticos, eu era móvel. Há muito tempo que a população já sabia: eles só estavam ali como enfeite, quadro sem moldura.

O vento gelado de fim de inverno ainda me incomodava, fazendo a roupa molhada me puxar com mais força para o chão. Pesava aquilo tudo, mas mesmo assim o solo deslizava com pressa por baixo de mim.

E eu não lembrava nada. Ou queria não lembrar.

Na delegacia dois policiais, um sentado, o outro de pé. Uma xícara de café que não soltava fumaça, calados. Talvez fossem apenas bonecos, espantalhos ali esquecidos.

A mulher, perua de elite, ficara contente com o desfecho. Já tinha quase um ano que essa história rolava, e quanto mais o corno ficava desconfiado, mais paranóico eu ficava. Ele ganhava bem, era professor numa universidade particular fajuta e complementava seu salário na política. Além dos corriqueiros desvios de verba, também conseguia enriquecer fazendo com que o estado desviasse o dinheiro investido na UDESC, a universidade pública, passando a investir quase todo nas particulares. Ela, a mulher, casara já grávida, dizendo que o filho era dele, coisa que sem muito pudor confessava aos mais íntimos que não era.

Casaram-se. Depois de enjoar de dar para os funcionários da casa e amigos dele, começou a freqüentar as festas elegantes. Ele, por sua vez, era figura já costumeira nos puteiros de elite do centro. Da Conselheiro Mafra até a Mauro Ramos, ele passara por todos, elegendo em cada um, sua favorita. Já tinha um padrão, um perfil de moças que geralmente despertava nele interesse, tinham que ter dezesseis ou dezessete anos, vindas do interior do estado com a promessa de uma vida melhor e uma história triste que contasse como foram obrigadas à prostituição para sobreviver.

E tinha eu. O inocente útil. O bode espiatório.

Entrei num beco e parei pra descansar. Duas moscas transavam em cima de um lixeiro de plástico. Cada lufada de vento trazia um novo espasmo de frio no corpo. Continuei andando disposto a ignorar o futuro.

Hoje eu devia ter desconfiado. Ela fez de tudo pra me segurar mais tarde e fez várias menções à pistola que ele guardava na mesinha ao lado da cama. Até a faca fora gentilmente colocada na cena do crime, através de um bolo que ela comprara e precisava ser partido. Na hora que ele chegou, não houve dúvida, correu pra mesinha pegar a arma, enquanto ela gritava pra mim que fizesse algo, que ambos iríamos morrer. Aí, a faca. Entre matar ou morrer nunca preferi a segunda.

Com isso ela havia conseguido. A vadia. Com um só golpe se livrou do marido e, me dando uma grana, se livrou também do amante dublê de matador, uma vez que ele agora não tinha mais função. As roupas lavadas para apagar o sangue e a fuga. Somente a cueca manteve ainda o sangue do defunto, uma vez que não precisava esconder a mancha ali. Grande e circular, como um tiro ou decepagem do troçolho.

Aí vem a parte da amnésia, e quando acordo estou correndo na rua gelada, com as roupas úmidas pesando no corpo. Eu a odiava. Apesar de tudo, acho que sempre a odiei, tanto ela quanto o marido. Acho que no fundo sempre soube que essa cena aconteceria e forcei a barra, fiz de tudo para que acontecesse, para que ele descobrisse, para que eu pudesse matá-lo. Até pequenos telefonemas eu dei, chamando-o de corno. Minhas visitas que inconscientemente demoravam cada vez mais. Até, por fim, o bolo que pedi a ela que comprasse e fiz questão de que o comêssemos no quarto. Não, tenho que parar com isso. São apenas suposiçoes, apenas delírios meus. Tudo o que sei é que depois de matá-lo tudo ficou confuso, e então amnésia. Só o que sei é que carrego cem mil comigo e que amanhã, quando os jornais denunciarem um duplo homicídio, não estarei mais por aqui.


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