Hemorróidas e sangue numa noite fria
Ademar estava decidido a por um fim de vez
nas hemorróidas. Depois de tentar tudo sem sucesso resolveu
seguir os conselhos da avó e foi ao terreiro.
O pai-de-santo, depois de três charutos e
meia garrafa de cachaça deu o conselho. Três velas
vermelhas e uma galinha preta, meia-noite de sexta-feira, encruzilhada.
Encruzilhada como a que Ademar se encontrava agora. Tinha medo
daquilo, embora não acreditasse naquelas coisas. Pediu a um amigo para
acompanhá-lo mas ele se recusou. Ademar teria que fazer sozinho.
Era difícil achar uma encruzilhada calma numa noite de
sexta-feira. A maioria das pessoas saía a noite para beber e espantar
um pouco o frio insular. Mas não era isso que mais o incomodava.
Quintino é o jornalista que mais tarde entrará nesta história.
Por ora basta ao leitor saber que ele tinha pretensões de ser poeta.
Estava escrevendo um artigo inspirado na aliteração que lhe servia de
título, "Padres Pedófilos Pedem Perdão à Paróquia", mas as palavras
lhe custavam a sair, talvez precisasse sair um pouco. Quintino era
jovem, mas já conquistara um bom espaço nos jornais que utilizava com
sabedoria maquiaveliana para caluniar seus opositores e conseguir
subir. A essa altura era mais um artista dos boatos que da palavra
propriamente. Chega, voltemos ao Ademar.
Fazia frio quando chegou na encruzilhada. No caminho para a
Lagoa havia um bairro de casas classe média que parecia tranqüilo o
suficiente. Talvez aquela noite estivesse tão fria que o pessoal
preferira se recolher em casa que sair. Numa esquina escura era cinco
pra meia-noite quando ele começou a acender as velas.
A galinha parecia quase morta, mas era o frio aliado às patas
amarradas. Ou talvez a consciência da morte iminente. Ademar
apiedou-se dela e resolveu deixá-la dentro do saco de linho onde era
mais quente, só tirá-la na hora certa.
Ele começou os cantos e rezas pelos seus santos. O preto-velho
o instruíra minuciosamente o que falar e como agir. Ademar trabalhava
de assessor na Assembléia Legislativa, de forma que estava habituado a
seguir ordens ao pé da letra. As velas brilhavam tênues, como se
tímidas pela escuridão que os cercava. Ademar suava de medo e o suor
lhe dava ainda mais frio, era preciso acabar logo com aquilo.
Por fim, bradou as palavras místicas que preparavam o ápice do
sacrifício, despiu-se, tirou a galinha pra fora, levantou o facão e
bateu com força. O sangue começou a jorrar e a galinha se
convulsionava, correndo pelos labirintos da morte. A cabeça não fora
de toda arrancada e ele precisou bater de novo, e de novo, até que ela
saísse por fim do corpo. O sangue quente espalhava vapor no ar e era
preciso apressar-se antes que coagulasse. Ademar ficou de quatro e se
contorceu todo até que, com mal-jeito, conseguisse pegar o corpo que
se debatia amarrado e levá-lo até a bunda. Sentiu o sangue quente
escorrendo pelas pregas até o saco, e dali até o chão. Ademar começou
a proferir a reza e pedir a benção conforme as ordens do pai-de-santo.
O sangue da galinha se misturava ao seu que brotava das hemorróidas e
Ademar teve que pressionar com força a galinha contra si mesmo para
que ela não escapasse, para que ficasse firme, como dissera o
pai-de-santo.
Nesse ponto Quintino entra na história. Voltava bêbado pra
casa com pressa de chegar e escrever aquele artigo enquanto a
inspiração do álcool não se esvaía. Conhecia bem o caminho e não se
importou em dirigir com os faróis apagados. Chegou a ver o brilinho
fraco das velas na esquina, mas talvez até mesmo isso tenha ajudado a
distrair sua atenção e não notar o homem de quatro na rua. Sentiu o
baque contra o carro e freiou. Ademar não teve chance de qualquer
reação depois que o veículo bateu com força e lhe atirou de com força
contra o chão. Bateu com a cabeça, o corpo girou num ângulo estranho e
o pescoço partiu-se.
Quintino desceu do carro. Viu o homem morto no chão, com a
bunda empinada e a galinha morta socada atrás. Foi até em casa,
guardou o carro e voltou. Continuava lá o homem morto com a ave morta.
Ligou para a polícia. Depois tirou fotos. Esperou a polícia chegar,
identificou-se como repórter e descreveu o carro importado preto que
matara o homem e fugira, apesar de saber que seu carro era um fuscão
verde. Os homens fizeram o B.O. e foram embora sem suspeitar de nada.
Voltou pra casa e, no dia seguinte, conseguiu pela primeira vez
conquistar a primeira página com o artigo "Hemorróidas Mata", onde
contava a versão fantasiosa sobre o que acontecera naquela noite. Que
se fudessem os padres, havia conseguido um furo, e esse furo seria sua
grande chance para o sucesso. Chegou a sentir pena da triste morte que
a galinha tivera, mas agora não podia mais pensar sobre isso,
conseguira seu passaporte pra fama.
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