Enquanto isso no subsolo
--- Espera, você ouviu?
--- Não ouvi nada, vamos.
--- Espera aí, eu ouvi de novo. É um barulho na neblina.
--- Barulho na neblina é fantasma. Vem, vamos embora que estou com sono.
--- Parecia um miado de gato.
--- Não há nada lá fora. É só uma maldita neblina.
--- Ainda assim.... você prestou atenção no vento ontem.
--- Ventava, como sempre.
--- Sim, mas mais forte.
--- Besteira.
--- Não, é sério. E tem mais, parecia diferente. Parecia que trazia um presságio de morte.
--- Deixa de ser tolo. A noite foi longa, trabalhamos demais e bebemos demais. Agora tudo que temos a fazer é atravessar o caminho até o carro e ir embora. Daqui a pouco amanhece e quero estar em casa antes disso para dormir.
--- Talvez você tenha razão. É só cansaço mesmo. Você verificou ele antes, não. Estava morto mesmo.
--- É claro que estava. Você acha que alguém ia deixar dois caras enterrarem ele vivo e não ia fazer nada. Mortinho, mortinho.
--- Mas, você checou direito. A coisa toda parecia tão habitual que já nem prestamos mais direito atenção ao que estamos fazendo. Você lembrou de testar as pupilas?
--- Testei o pulso.
--- Eu sei que você testou o pulso porque eu te vi testando o pulso. Estou perguntando das pupilas.
--- Eu já disse Leni, ele estava morto.
--- Mas você esqueceu de checar as pupilas não é?
--- Vamos indo!
--- Esqueceu, não esqueceu?
--- Porra, esqueci. Esqueci de checar as malditas pupilas. E daí, que diferença faz? Tem quase quinhentos quilos de terra em cima dele e se não estava morto naquela hora, agora está.
--- Os outros não vão gostar disso.
--- Puta que pariu, os outros que se danem. São quase seis horas da manhã e se você não se calar vai fazer companhia pros outros corpos que já pusemos lá embaixo.
--- Talvez fosse preferível. Tem alguma coisa nesse mato que a gente passa antes de chegar no carro. Eu ouvi os barulhos durante a noite. Eu não quero ir.
--- Escuta, seu idiota. Eu também ouvi os barulhos. Eu ouço eles há quase dois meses, sempre rondando por perto, parecendo nos observar. Nunca disse nada porque sei que você é um cagão covarde e ia ficar morrendo de medo.
--- Eu acho que ele se mexeu.
--- O quê?
--- Quando comecei a jogar a terra. Eu vi a mão dele se mexer. Eu vi.
--- Seu idiota. O cara está morto e pronto. Se não estava agora está. Ninguém sobrevive uma hora debaixo da terra sem respirar, entendeu. Já era. Agora vamos embora logo daqui que eu tenho a impressão que essa coisa que tem aí fora fica mais agitada conforme o dia vai clareando. Vamos embora logo, ouviu, senão será tarde.
--- Ele era cigano.
--- Eu sei Leni, um maldito cigano que não tomava banho. E sabe o que mais, está morto agora.
--- Mas você não entendo Jó, nós só devíamos enterrar. O acordo era esse, sempre foi. Eles matam e nós enterramos. Não era pra nos envolvermos nisso.
--- Tá falando do quê. Desovar um cadáver agora deixou de ser crime? Voltar pra casa sujo de sangue e terra é só um emprego normal? Eu e você somos tão culpados quanto eles, agora pega esse revólver e se comporta como homem. Só atira se eu mandar.
--- Matar um cigano dá azar. Nós o matamos. Nós matamos o velho.
--- Puta merda! Que estrondo é esse.
--- Está vindo pra cá!!!! Toma isso filho da puta. Toma, Toma, toma!
--- Seu pulha.
--- Eu acertei ele.
--- Acertou bosta nenhuma. Descarregou a arma, só isso. Agora estamos sem nada.
--- Quantas balas tinha.
--- Um pente.
--- Quanto dá isso?
--- Seis.
--- Eu só disparei quatro.
--- Eu contei seis.
--- Não, eu disparei quatro, toma, olha.
--- É verdade. Ainda tem duas.
--- Não vai dar.
--- Como assim.
--- Olha pela fresta. Já amanheceu.
--- Que merda. Merda. Eu te falei Leni. Eu te avisei pra irmos logo.
--- Eu não vou conseguir.
--- Pára de chorar.
--- Você não vê. Duas balas. Uma pra cada um de nós.
--- Bem, se for preciso...
--- Eu não tenho coragem.
--- Eu sei, você é um maricas.
--- Por favor Jó, você vai ter que fazer. Não vou conseguir puxar o gatilho.
--- Tem certeza que prefere assim.
--- Sim.
--- Quer aqui. Na testa.
--- Sim.
--- Assim.
--- Sim. Obrigado.
--- Então vai se foder. Eu posso precisar dessa bala, não vou gastar em você. Você fica pra descobrir o que é isso. Eu tô indo agora.
--- Jó, jó, volta. Por favor, eu não tenho arma. Por favoooor.
--- ...
--- Jóóóóóó!!!!!!!!!!
--- Ahhhhhhh, ahhhhhhhh, ahhhhhhhhhhhhhh!!
--- Jó. Por que você gastou as balas. Jó? Acertou a coisa?
--- ...
--- Jóóóó! Jóóó! Jóóóaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...
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