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Memórias do cárcere

Urina e esterco cobriam o chão da jaula onde éramos postos para morrer. Não havia comida. Não havia água. Não havia mulher.

Aos poucos o recém chegado percebia os vestígios daquele que o antecedera. Um preso por vez era colocado e esperava-se sua morte até que outro cadáver fosse pra lá levado. Ao redor da jaula não havia mais mato, fora todo arrancado pelos anteriores no desespero da fome. Os corpos iam se amontoando. Apodreciam e queimavam os pulmões do recém-chegado com seu cheiro.

Foi naquele momento que senti saudades da liberdade, pela primeira vez. Saudades de brindar com um copo cheio de vinho ao lado de duas mulheres nuas, dentro delas. Saudades de ter um prato de comida invés de disputar com as moscas por um pedaço do cadáver.

Todo homem tem o direito de comer duas mulheres e um pedaço de carne por dia.

Na esfumaçada cabine do puteiro, reservado, era esse o nome que davam, um boquete cinco pila, buceta quinze, rabo trinta. Cinqüentão cobria uma noite no paraíso. A dose de uísque era, no entanto, muito cara, vinte pila cada.

Todo homem tem o direito de beber adequadamente ao saciar seus desejos vitais.

Com dez anos no banheiro de casa. Fazia muito calor, eu suava muito, demorava pra ejacular. A pele esfolada de tanto ser sacudida e a cabeça cheia de idéias maníacas. Uma mosca pousava no ombro esquerdo me fazendo parar de tempo em tempo para espantá-la. Eu precisava matá-la. Me dividia entre a ânsia pelo gozo e a ânsia homicida. Eu precisava me decidir entre um ou outro, ou gozava logo, ou matava a mosca. Quando gozei caí no piso gelado e adormeci tremendo de frio em pleno verão.

Todo homem tem direito a um ambiente adequado à satisfação de seus desejos.

Meus direitos básicos me foram negados toda a vida. Quando um dia recorri às armas para fazer com que meus direitos fossem cumpridos, me encarceraram aqui.

Apaguei. E comigo apagou a luz do dia. Meu primeiro dia na jaula terminara e eu ainda vivia.

No segundo dia vomitei sangue. Acordei vomitando o pouco de sangue que tinha e me descobri mijado. Eu não conseguia controlar mais as funções excretoras. Quando criança enchera uma garrafa com cachaça e bagas de guaraná. Deixei curtindo um ano, depois abri e tomei tudo. Me caguei, mijei e desmaiei. Acordei seis dias depois no meu quarto com meus pais chorando. Eu me tornara a decepção da família. Me deram seis horas pra deixar a casa. Me masturbei de novo no banheiro até pegar no sono. Quando acordei fui embora.

Cresci num puteiro. Tocava música, cuidava da porta, servia bebidas e comia as moças mais novinhas que ainda se apaixonavam. Quando tinha trinta anos a dona do bordel me expulsou porque descobriu que eu andava roubando bebida de madrugada. Ela me deixaria ficar se eu a comesse, mas isso era repugnante demais.

O ar era sufocantemente salgado nos últimos anos. Algo indizível, como se a desgraça que se abatera sobre a humanidade estivesse presente até mesmo no ar. Sair matando pareceu a única coisa sensata a se fazer, a única saída.

Comprei todo meu dinheiro em balas douradas e brilhantes. Seu corpo cilíndrico fluía sobre a ponta curvando-se cada vez mais, até que a abóbada da morte estivesse perfeita para perfurar a carne. Saí matando pelas ruas e matei pelos menos cem antes que me pegassem.

Por isso me trancafiaram aqui para morrer. Comecei a vomitar de novo e voltei a desmaiar.

Era o terceiro dia na jaula. Eu estava fraco. A morte parecia certa. Tentei me erguer para me jogar de cabeça contra o chão e acelerar minha morte, mas a grade em que me apoiara cedeu. Ruiu, podre de ferrugem e desgaste. Olhei sem crer para a frente, um campo verde de uma fazenda sem nenhum obstáculo a me barrar. Com muito custo e esforço me ergui e saí da jaula. O sol brilhava com força e o ar espetava me pulmão quando respirava. Despi as roupas imundas e apodrecidas e saí correndo. Corri livre até encontrar um cercado com ovelhas. Entrei, e lá mesmo peguei a mais bela de todas e a fiz minha noiva. Transamos três vezes e depois fomos embora, juntos. Cruzamos os campos como seres livres, o que agora novamente eu era.


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