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Enquanto as unhas dos pés continuam sujas

Quem já levou um chute no saco talvez me entenda. Era um daqueles dias em que o sujeito não quer fazer mais nada, a não ser procurar um banheira com água quente e afundar nela. Sente primeiro os pés esquentando, as peles do corpo se distendendo, as banhas que substituem os músculos relaxando.

Eu ainda não tinha banheira em casa mas precisava urgentemente de uma. É como uma daquelas necessidades inadiáveis ou pensamentos de um personagem em uma história em que o autor não sabe sobre o que falar. Minha única diversão, enquanto isso, era saber que toda vez que eu usava o banheiro pingava merda da minha privada no vizinho de baixo. E isso já estava assim a um mês, mas eu disse a ele que ia chamar um encanador um dia, não disse? O que mais ele quer que eu faça?

Deitei no chão do banheiro e comecei a me esfregar no piso úmido imaginando o quão bom seria ter agora uma banheira. Uma banheira quente e molhada, como uma buceta gigante que vem e nos acomoda em seu interior. A banheira simbolizava a felicidade, e era nessa felicidade que eu tentava chegar ao me esfregar no chão cheio de pentelhos. Lembrei dos sonhos que me atormentavam, incêndios, febre aftosa, tudo era motivo de sonhos. Cheguei a sonhar que ia no meu bar de costume e lá me davam pra beber uma cerveja da marca errada. Era o inferno sobre a terra.

Olhei pro porta-toalhas na parede e tive a certeza que aquilo não era nada menos do que os chifres de Baphomet. Senti o hálito de bode invadir o ambiente e uma risada maníaca pareceu ecoar em algum lugar lá fora.

Depois da risada veio um grito feminino. Daí outra risada. Um risinho feminino dessa vez e, por fim, um rádio de carro sendo ligado tocando poperô a todo o volume.

Eu estava no inferno. Era isso. Tudo se explicava. Eu tivera um enfarte, derrame ou isquemia cerebral enquanto mijava e agora estava morto. Lúcifer ao meu lado olhava com um jeito andrógino e debochado e eu lhe disse:

--- Foi mal, meu caro, mas não acredito em deuses nem anjos, caídos ou não...

Ele sumiu. E quando abri os olhos constatei que continuava no banheiro deitado no piso frio ouvindo o maldito som que saía do maldito rádio do maldito vizinho.

O mundo estava apodrecendo. Era isso. Alguma praga corroía tudo e transformava a vida em imundice. As pessoas já haviam deixado de viver, apenas assistiam tv e trabalhavam.

Botei de volta minha calça de moleton, que se alguém visse, poderia pensar pelo buraco nos fundos que eu havia parido um bezerro através dela. Sentei na privada e comecei a espremer espinhas e tirar cracas da pele.

Tirei de debaixo das unhas do pé aquela sujeirinha que fica lá mais de meses sem ser lavada, sem conhecer água ou limpeza alguma. Juntei tudo num bolinho macilento e senti que tinha cheiro de queijo. Provei um pouco e o gosto também parecia o de queijo.

Concluí que aquilo que saíra de mim não poderia me fazer mal e comi aos poucos a bolota de sujeira de unha dos pés. Eram pequenas alegrias como essa que faziam a vida continuar valendo a pena.


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