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O início e o meio

Um dia, estava o velho Anacreonte vagando por aí, curtindo inadvertidamente seus cinqüenta anos sob o sol quando, muito descuidado, tropeçou num desses portais dimensionais que vivem jogados pelos cantos, tão divulgados e apreciados nos contos de ficção científica.

Tropeçou e foi cair direto num outro universo, dimensão paralela ou tempo, como quiserem chamar, onde tudo parecia exatamente idêntico ao bairro de sua infância. Lembrou-se do bar, e caminhou cerca de meia hora até chegar lá. Continuava igualzinho. Entrou no bar e viu de cara o Zeca, que trabalhava no balcão quando ele (Anacreonte) tinha lá pelos seus dezesseis anos e costumava a freqüentar a espelunca. E, pasmem, o Zeca continuava igualzinho, mesma cara, mesma altura e ainda contando pros fregueses aquela velha história da cabritinhas com "quem" tivera suas primeiras aventuras sexuais.

Anacreonte acenou com a cabeça, pegou um banco e começou a beber. Ninguém o reconhecera. Bebeu a noite inteira no balcão e viu desfilar pela sua frente um sem número de pessoas que ele conhecia na época. Todas iguaizinhas. Na tevê do bar passava algo sobre uma nova descoberta de corrupção no governo. Tudo realmente igualzinho a como houvera sido em sua infância, uma vez que nos livros de história brasileira fulgurava sempre, como principal característica do século 20, o fato do país só ter sido governado por presidentes canalhas, medíocres e corruptos durante todo o período.

Chegou à conclusão que tinha viajado no tempo. Sim, só podia ser isso. Ao menos era o que tudo indicava e ele já tinha pensado tempo demais no assunto pra continuar com isso na cabeça. Passado, realidade alternativa, fosse lá o que fosse tudo que importava é que ele tinha voltado cerca de 30 anos ao passado. Pena não ter umas notas velhas para passar por aqui e conseguir alguma grana, nem lembrar resultado de alguma coisa na qual pudesse apostar. Nunca gostara de esportes, de qualquer jeito.

Estava lá, bebericando, desde o início da tarde e já era agora quase cinco e meia da manhã. O dia se preparava para nascer. Aconteceu então o inevitável. Anacreonte piscou, piscou e, por mais que soubesse que aquilo iria acontecer, mesmo assim não podia acreditar. Viu a si mesmo, com trinta anos e trinta quilos a menos entrando no bar.

Anacreonte, o jovem, estava já bêbado e nem reparou no velho que o olhava assustado num canto. Debruçou-se no balcão, pedindo cerveja e Steinhager, e começou a murmurar com calma e beber com pressa.

Anacreonte tentou reanimar essa noite na memória, sem sucesso. Lembrou-se da puta ressaca que teve no dia seguinte e deu-se por satisfeito com esse fragmento do passado. Sentia que aquilo era uma espécie de chance, uma oportunidade, uma benção a ele concedida para que pudesse voltar atrás e mudar todo seu destino. Poderia consertar todos os erros e fazer tudo perfeito, mas o que, o que deveria fazer?

Anacreonte, o velho, ficou ali, cerca de meia hora pensando no que fazer sem tomar nenhuma decisão. O sol nascia, e os únicos no bar agora eram ele, o jovem e o cara das cabras. Aproximou-se do jovem. Viu que ele balbuciava alguma coisa incompreensível sobre mulher. Pensou em falar algo a respeito, sobre quais mulheres ele deveria evitar no futuro, quais o chutariam, quando chutariam e o que não dizer. Pensou em dizer para evitar aquela sacana do chicote que sumiu com um monte de grana uma vez, mas depois lembrou dela na cama e mudou de idéia. E assim, sucessivamente, toda a idéia que lhe veio na cabeça descartou.

Por fim sentou do lado e decidiu bater papo com o rapaz, pra ver se pintava alguma idéia. Nada. O moço parecia apaixonado, mas o velho não conseguia saber pelo rapaz e nem lembrava por quem havia sido. Por fim decidiu ir embora. Eram sete horas. O balconista dormia e não ia notar se ele fosse embora, de fininho. Lembrou-se daquela moeda de ouro que sempre carregava quando jovem, até o dia em que a perdera. A essa altura ele provavelmente não a teria perdido e valeria uma boa grana no futuro.

Sorrateiramente aproximou-se e retirou a carteira do jovem bêbado com um esbarrão. Foi ao banheiro. Abriu o compartimento interno da carteira e achou, lá estava ela. Aquela moeda lhe renderia umas boas cervejas no futuro.

Jogou a carteira no chão e saiu do banheiro. Tinha uma longa caminhada de volta a fazer e nem sequer sabia se o buraco estaria ainda lá, esperando por ele. Notou que o jovem agora também dormia em cima do balcão, competindo com o cabriteiro pra ver quem roncava mais alto, e foi embora.

No caminho brincava com sua moeda e amaldiçoava a inutilidade daquele buraco dimensional. Até que não fora assim tão ruim, afinal ganhara uma noite gratuita de bebida, uma moeda de ouro e um passeio agradável por suas memórias. Mas bem que ele podia ter ser avisado antes para vir melhor preparado ou o buraco podia ao menos tê-lo levado a uma época mais interessante. Talvez o 1900, para que ele pudesse viver um século inteiro matando todos os canalhas vagabundos que viriam a presidir o país. Isso é claro, se o buraco concedesse também uma cláusula de imortalidade ou algo assim.

Era sete e meia quando viu a sua frente o buraco, e dirigiu-se arfando pra ele. Tava muito quente, e a ressaca agravava ainda mais a sede. Antes de entrar no buraco lembrou-se do único conselho que poderia dar ao jovem para acabar com todas suas dores e sofrimentos, transformar toda sua existência conturbada e pesarosa em algo macio e suportável de se viver. Tudo que ele precisaria fazer era voltar e sussurrar no ouvido do rapaz: Meu filho, esquece essa obsessão por mulher, namoro, coisa assim. Mulher é bom, mas não pra guardar em casa. Qualquer homem que mora ou já morou sozinho irá lhe confirmar essa descoberta "A Melhor Coisa do Mundo é Cagar de Porta Aberta enquanto se Bebe uma Cerveja!".

E era verdade. Não havia ninguém que já houvesse experimentado fazer isso e que não confirmasse. Mas agora ele já tava cansado demais pra ir até o bar só pra consertar sua própria vida. Se ao menos fosse alguém importante ou famoso ainda valeria a pena. Entrou no buraco e voltou.


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