Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Noite sem fim

Eu precisava escrever. Precisava escrever e olhava, apavorado, o relógio, que teimava em contar os minutos e segundos que escorriam como água.

Eu precisava escrever. Escrever sobre qualquer coisa, sobre mulher, política, festa, mulher, a humanidade, sobre qualquer coisa. Mas sobretudo sobre mulher.

Mas porra! Como diabos eu ia escrever algo decente, se há mais de seis meses eu não comia ninguém. Eu precisava pensar, pensar, pensar. Mas sempre que começava a única coisa que surgia em minha frente era aquela enorme buceta gigante.

Botei uma folha na máquina de escrever. Acendi um cigarro. Deslizei os dedos suavemente sobre as teclas da máquina, sem me dar conta do erotismo do ato. Merda. Como é possível escrever sem mulher.

Me concentrei. Resolvi começar pelo título. Pelo título, que geralmente era a última coisa que eu fazia, mas que às vezes dava certo começar por ele. Logo veio um à cabeça: "Oito homens barbados à procura de sexo". Não ... muito erótico. Eu precisava parar de pensar no assunto, ou então jamais conseguiria escrever de novo. Outros títulos vieram: "Zum-zum e uma foda à mil", "Porque fuder é melhor do que câncer", "O dedo, o cú e a foto".

Os dois últimos pareciam sugestivos até, mas como escrever um troço desses sem logo começar a pensar em mulher. Tinha uma amiga, escritora com talento, mas com um grande problema: toda vez que começava a escrever sentia o maior tesão, até que por fim tinha que dar uma parada e se masturbar com o primeiro objeto que lhe aparecesse na frente. Depois disso, ela voltava e não conseguia mais escrever. Tinha sumido. Tudo, toda a idéia, toda a inspiração, todo o ânimo. Sem querer eu me encontrava agora em situação parecida.

Tirei a folha e rasguei. Botei uma nova, em branco. Novos títulos: "Passeando no parque", argh, terrível. "Morno e suave"... esse parecia bom. Me detive pensando nele alguns momentos, mas logo voltei a imaginar, sugestionado pelo título, enrabações e outras coisas assim. Não definitivamente não. Guardaria esse para outro dia.

Precisava escrever... mas como pode um homem conseguir escrever, quando está há seis meses sem comer ninguém e sabe que em duas horas irá reencontrar aquela mulher que há tanto tempo não via... uma vã esperança de comer alguém. Decido me masturbar. Não. Preciso escrever. Começo de novo a pensar nela, duvidando da capacidade do meu corpo de se disciplinar. Me imponho uma recompensa, talvez assim a coisa funcione. Primeiro escrevo, se conseguir pelo menos uma página, então me masturbo.

Inicialmente uma revolta me domina, mas então, lentamente, o corpo parece, por fim, começar a ceder à chantagem, e cooperar comigo, na iminência de um prazer vindouro.

Ponho novamente outra folha. "Porque não enrabei mamãe" é o título. Acho pesado. Resolvo mudar. Mudo para "Porque não enrabei minha irmã". Agora sim, bem melhor, afinal que é o cara que nunca tentou enrabar sua irmã?

Relembro minha irmã, e decido começar o conto descreveendo-a. Falo das curvas, do torso, das coxas. Remendo aqui e ali com pedaços de outras mulheres tendo em mente um único fim: esculpir a mulher perfeita. A coisa está funcionando, meu corpo e meu cérebro começam a cooperar e trabalhar em conjunto naquela que será a grande obra. O telefone toca. Toca uma, duas, três vezes. Hesito, sem saber se aproveito o pique de escrever ou atendo aquela porra. Cai na secretária eletrônica. Bom, eu penso, provavelmente vão desistir...

--- Alô? Alô? Anacreonte. Aqui é Dom Alephito, teu editor. Atende essa porra cara, eu sei que tu tá aí!

Merda. Saio da máquina e atendo o telefone, esperando a porra da secretária desligar.

--- Alo? Aleph?

--- Anacreonte? Bom te encontrar cara, preciso falar contigo.

--- Que foi agora, algo importante?

--- Cê não quer vir aqui?

--- Não, não, agora não posso, tem que ser por telefone.

--- Tá bom. O negócio é o seguinte... sabe aqueles contos que cê me mandou cara... é... esses mesmos... pois é, o problema é que eles tão uma merda cara, tá tudo um lixo. É... pois é... eu sei disso... te entendo... o problema é que os editores de revista querem algo decente para publicar, e não essa indecência que você escreve. Não cara... não... espera um pouco... não é isso, não, cara, eu adoro o que tu faz, tu sabe disso, o problema é que não quero morrer de fome...

Interrompo mais uma vez a fala dele, dessa vez berrando e xingando ele em todos os idiomas que conheço, e em alguns que nem existem. Estou perdendo a cabeça. Sinto que estou perdendo a cabeça. Seis meses sem comer ninguém. Seis meses sem ser publicado, sem escrever nada que mereça ser publicado. É o inferno, o branco, todo escritor passa por isso, eu acho, vez ou outra na sua carreira. Mas agora estou afundando e discutindo com a única pessoa que não abandonou ainda o barco, a única pessoa que ainda acredita em algo do que faço.

Paro de gritar. Do outro lado, somente o sinal do telefone indicando que bateram na minha cara.

Sento de novo na frente da máquina. Fudi com tudo. Um único e imenso vazio me preenche, indicando que mais uma vez fudi com tudo pra valer. Dessa vez, porém, mais do que outras. Leio o pouco que havia escrito antes, mas já não compreendo, não encontro pique. Apenas algumas linhas idiotas e sem sentido, nada mais. Arranco novamente a folha e a rasgo.

Sinto o silêncio. O silêncio e o vazio da escuridão de inverno, que me jogam todas as culpas do mundo na cara. Sei que não vou escrever. Sei que não posso escrever. Sei que no estado que estou nem me masturbar eu consigo, pois no momento sou o homem mais brochado do mundo. No momento meu pau não levantava nem se a mulher mais linda viesse e esfregasse a buceta na minha cara. Penso em buceta... nem salivar eu salivo. Penso no encontro que teria daqui a duas horas. Impossível. Estou brochado, sem dinheiro, sem fama e sozinho. O último rato em um barco deserto chamado Eu.

Decido não ir ao encontro. Ainda falta tempo. Mas, de qualquer forma, não vou mais conseguir escrever, muito menos comer alguém. Pior... sei que não tenho o dinheiro para dar à ela, e a Laura sempre foi assim, por mais que goste do cara, por mais que goste do que faz, ela nunca faz de graça.

Acendo o penúltimo cigarro. Está chegando ao fim. O maço e a vida. Sei que já ocorreu tudo que devia, sei que só resta esperar. Vou me fumar até o fim.

Pego o uísque na mesa, sirvo um copo e contemplo o sorriso dourado que debocha de mim. Uma barata pousa em cima da máquina, rindo também de mim.

Baratas não deviam andar por aí no inverno, digo a mim mesmo. Esse é seu último sorriso, baratinha. Pego-a com força, sentindo suas patas roçarem em meus dedos. É estranho... estranho sentir suas patas, ela vai morrer antes de mim. Mergulho-a no uísque e acompanho seus últimos movimentos. Ela pára. Viro o copo e me sirvo outra dose. Olho a asa negra na casca do meu gelo. Escura como meu fim, amarga como eu. Bebo mais.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski