Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

De como se ler Wittgenstein

Wittgenstein, filósofo alemão, foi um dos grandes nomes no estudo da filosofia da linguagem no século 20. (Antes, porém, de falarmos propriamente de Wittgenstein, lembrei da história de um outro cara, de família alemã, mas que não se chamava Wittgenstein, mas sim Eiche. Eiche vivia no interior de Santa Catarina. Francisco Schmitt Eiche, esse era seu nome completo. O pai viera da Alemanha na segunda metade do século dezenove e conhecera sua mãe ali, na colônia de imigrantes. Ali se conheceram, se casaram e tiveram os treze filhos, dos quais Francisco era o mais velho.

Era lá pelos idos de 1933, quando Hitler chega ao poder na Alemanha, que Francisco começou a ficar paranóico, preocupado com a possibilidade de um levante nazista no sul do país. Como já tinha seus quatro filhos, resolveu não dar sopa e se prevenir pegando todo o ouro que a família tinha em jóias, relógios e enfeites e escondê-lo. Francisco tinha 50 anos a essa altura, mas não deixava nunca de acompanhar atento as notícias da Alemanha. O velho Eiche era foda, duro na queda mesmo. Trabalhou como um cão juntando o máximo de dinheiro que podia para deixar pros filhos, mas mesmo assim não conseguira juntar quase nada. Não, não era por ser rico que tinha medo que levassem seu ouro, mas sim por ser judeu.

Ninguém, nem a esposa, nunca soube onde ele escondeu o ouro. Ele se recusava a dizer, dizia que somente quando estivesse morrendo iria revelar. A mulher, acostumada com as loucuras e paranóias que o marido tinha não deu bola, deixou estar.

Acontece que dali a alguns anos a guerra realmente veio a estourar, como o velho Eiche previa aos incrédulos. Em muitas cidades do país já haviam sedes do Partido Nacional-Socialista e a paranóia começou. No sul do país, principalmente, instaurou-se um regime de terror, violência tanto física quanto psicológica. Do dia pra noite passou a ser proibido de se falar alemão, muitos tiveram que aprender o português na marra ou simplesmente se recolher em casa evitando o contato com outras pessoas, e qualquer um que se chamasse Hans ou Fritz era imediatamente suspeito de ser um possível espião.

Infelizmente para o velho Eiche, não foram os nazistas o pergio que acabou por levá-lo a tragédia. Logo começaram os apedrejamentos e saques a possíveis nazistas, e numa noite, um grupo de habitantes, cidadãos da cidade, cercaram a casa de Eiche, apedrejando-a. Esconderam os filhos no sótão e Eiche desceu para expulsar a turba enquanto a mulher fugia para chamar ajuda. Acontece que um só homem é pouco contra um população enfurecida. Logo gritaram: "Olha, lá está o alemão safado", "pega aquele nazista", "alemão filho da puta, volta pra tua terra", "comunista desgraçado, espião alemão!".

É claro, o que a população dizia nem sempre fazia muito sentido, mas o que importa é que acabaram apedrejando a casa e linchando o velho Eiche, enquanto os filhos, que tinham de quatro a vinte anos, olhavam assustados da janela do porão. Originalmente a idéia era apenas espantar aquilo que pra eles era um espião nazista, mas depois de tanta porrada, Eiche acabou engasgando em sangue e morrendo ali mesmo, na frente da casa. E isso que ele era judeu, odiava o nazismo. Nazista mesmo só foi aparecer na família uma geração depois do velho, quando um dos filhos, revoltado em ver o pai morrer apedrejado, começou a se interessar pelos discursos de Getúlio Vargas e Plínio Salgado e, a partir daí, pra virar nazista foi um pulinho.

Mas pulemos essa parte da história, não convém a um escritor falar sobre a verdade senão, daqui a pouco, dirão por aí que o escritor não acredita que vivemos num país justo e democrático, sem miséria, desigualdades, apenas justiça, paz, respeito e dignidade para todos.

Acontece que a viúva não conseguiu emprego e teve que se virar fazendo bicos para sustentar os quatro filhos, que à exceção do caçula de quatro anos, tiveram todos que começar a trabalhar também. Nunca acharam as jóias que o velho escondera e que teriam sido necessárias para que não passassem tanta fome. Aos poucos a velha casa começou a apodrecer e definhar, a envelhecer cedo demais para uma casa antes tão boa, assim como a família do falecido Francisco Eiche. Até o carvalho que o velho plantara na frente de casa uns dez anos antes, para que crescesse e simbolizasse a solidez da família, acabou adoecendo e apodrecendo suas raízes. As folhas murchas já não conseguiam mais servir pra nada, quando a árvore por fim secou e morreu.

Os Eiche deixaram-na lá. Estavam preocupados demais tentando sobreviver para notar a árvore que seu pai sempre cuidava de forma tão obsessiva. Um dia a prefeitura cortou e levou-a ao depósito de lixo. Um mendigo, que procurava entre os restos o que comer e o que usar para se aquecer, acabou a achando a árvore, que era de fato só um tronco fino e seco, e acabou levando para fazer fogo. Quando notou algo estranho dentro do fogo, o mendigo puxou com um graveto e logo descobriu um colar de ouro. Começou a revirar e logo encontrou os relógios, brincos e pulseiras que o velho Eiche havia escondido num furo feito no tronco há mais de dez anos antes, quando era ainda uma árvore novinha. a árvore cicatrizou ao redor do furo, assim como muitas vezes fazem com um ferro ou arame que se atravessa nelas quando ainda nova, e cresceu sob os cuidados e vigilância do velho.

O mendigo mal pode acreditar na sorte, que só durou até que ele tentasse vendê-las e a polícia fosse chamada. Como era óbvio que o mendigo não poderia tê-las achado, mas sim roubado, deram-lhe uma surra e deixaram um mês preso. Como nunca apareceu alguém para reclamar a posse das jóias, acabaram soltando o mendigo e a mulher do delegado ganhou um lindo presente no aniversário de casamento.

Moral da história? Bem, não, infelizmente não há... Decididamente, moral é uma coisa cada vez mais impossível de se achar. Não liguem, foi só um devaneio, uma lembrança rápida que passava pela mente enquanto falávamos de Wittgenstein e que eu resolvi compartilhar com vocês. Ignorem, voltemos ao nosso assunto.)

Wittgenstein, como eu ia falando, teve duas fases distintas em sua formulação de teorias, o primeiro Wittgenstein e o segundo Wittgenstein. E a forma como eu sugiro ler Wittgenstein é deitado com os pés pra cima, ou então plantando bananeira enquanto se toma suco de Acerola por um canudinho. Não se esqueça, nesse caso, de virar também o livro de cabeça pra baixo de modo a facilitar a leitura. Wittgenstein é ótimo. E suco de Acerola também.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski