Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Curras etílicas que fazem sangrar

Depois a bebida apagou tudo. A última coisa que eu me lembro foi de ter visto o índio velho correndo pelado pelas dunas da lagoa...

"Continue", disse o investigador. Tomei um pouco de ar e recomecei.

Antes disso teve a briga. E foi só. Não tem mais nada.

"Nada?"

Não, nada.

A sala ficou em silêncio. O ar condicionado velho que tanto incomodava deu uma pausa e nem sequer as cortinas se mexiam. Algo surgiu de repente em minha lembrança.

Espera, há algo sim. No início da noite veio um velho. Barba branca, chapéu de feltro, baixinho, magrinho, mas bebia como um urso alcoólatra. Por dez vezes o vimos pedindo uma pinga e virando, sem nem abrir os olhos mal fechados.

Valdecir, o garçom fantasma chegou nele. Não sei o que ele disse, mas fez o velho abrir os olhos e começar a discursar. Pelo sotaque ele vinha de algum lugar entre Lages e Chapecó. A cerveja amornava em meu copo mas eu relutava em bebê-la, estava sem grana ultimamente. O velho era uma espécie de peão erudito, algo improvável demais para que pudesse ser descrito numa página de literatura séria. Mas a vida tem dessas coisas, sua impossibilidade sempre nos atropela.

O velho começou a falar de suas memórias de juventude. Rejubilou das mulheres que comeu e disse que era viado demais pra comer um homem. Valdecir se interessou pelo papo e deu corda pro velho, ele explicou:

--- Entenda, vivemos numa sociedade herdeira dos romanos, pra quem dar era desmoralizante mas comer não, assim, o cara pra ser macho tem que comer tudo que é mulher que ver e também os homens. Quanto mais macho o cara que ele comer, mais macho ele vai estar provando que é, porque subjugou o outro macho. Isso sempre foi assim, e eu até tentei, mas descobri que não dava. Sempre fui um frouxo, sabe. A simples visão de um cu peludo era suficiente para me encher de terror e nojo. Meu pau jamais ficaria duro com uma coisa daquelas, daí que eu resolvi admitir que era viado demais para aquilo e preferi me ater somente às mulheres.

Um silêncio pesou no bar. Alguns fregueses enojados, outros horrorizados, outros eufóricos e outros batendo palminhas e comemorando por serem mais machos que o velho. Valdecir constituía um grupo a parte, o grupo dos pensativos.

O velho voltou a pedir suas cachaças e a beber. O bar parecia aos poucos se recuperar daquele depoimento sem maiores traumas. A música de fundo era suportável e os fregueses voltavam a pedir suas cervejas e martinis e cachaças e vinhos e cubas e caipiras.

Foi quando entrou o índio. Todo cheio de roupas e penas e tiras de couro. Sentou no balcão e foi ordenando em tom alto, mas quase incompreensível, tamanha a embaralhidão de suas palavras: "ô barman, dá mais conhaque aqui".

E começou a xingar e praguejar em palavras estranhas que vinham provavelmente de alguma língua indígena.

Valdecir brilhava os olhos. Olhou pro índio, olhou pro velho, olhou pro índio e, por fim, olhou novamente pro velho. Disse: "velho, eu vou provar que sou o mais macho daqui! Vou comer aquele puto daquele índio. Aposto que ele vai gritar quando eu meter o tranco na birosca dele".

E foi isso que aconteceu. Agora, mesmo depois de tanta bebida, eu começo a lembrar do que se passou. As imagens traumáticas que me fizeram apagar da memória aquela noite agora voltam, e posso ver tudo. Depois disso, os momentos, os clarões de memória. Valdecir pulando no índio, a roupa do índio arrrancada, a cara de desespero do nativo já deposto de tudo pela civilização, prestes a perder também a honra, o rosto vermelho de Valdecir, a briga, as pregas do índio, e por fim aquele velho símbolo da dignidade e resistência sul-americana correndo pelado pelas dunas em desespero.

Um momento de silêncio percorreu a sala em que o detetive me interrogava. Ele tentou tragar do cachimbo, que acabara apagando enquanto eu contava a história. Comecei a passar mal por causa da memória que agora voltava com suas cores vivas e cruéis. O detetive parecia não estar muito bem. Ele disse somente: "Obrigado. Isso esclarece muito".

Abriu a porta e me deixou sair. Depois disso fui pra casa me encher de cachaça até que um dia eu consiga, finalmente, esquecer tudo de novo.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski