Curras etílicas que fazem sangrar
Depois a bebida apagou tudo. A última coisa
que eu me lembro
foi de ter visto o índio velho correndo
pelado pelas dunas da lagoa...
"Continue", disse o investigador. Tomei um
pouco de ar e
recomecei.
Antes disso teve a briga. E foi só. Não tem mais nada.
"Nada?"
Não, nada.
A sala ficou em silêncio. O ar condicionado velho que tanto
incomodava deu uma pausa e nem sequer as cortinas se mexiam. Algo
surgiu de repente em minha lembrança.
Espera, há algo sim. No início da noite veio um velho. Barba
branca, chapéu de feltro, baixinho, magrinho, mas bebia como um urso
alcoólatra. Por dez vezes o vimos pedindo uma pinga e virando, sem nem
abrir os olhos mal fechados.
Valdecir, o garçom fantasma chegou nele. Não sei o que ele
disse, mas fez o velho abrir os olhos e começar a discursar. Pelo
sotaque ele vinha de algum lugar entre Lages e Chapecó. A cerveja
amornava em meu copo mas eu relutava em bebê-la, estava sem grana
ultimamente. O velho era uma espécie de peão erudito, algo improvável
demais para que pudesse ser descrito numa página de literatura séria.
Mas a vida tem dessas coisas, sua impossibilidade sempre nos atropela.
O velho começou a falar de suas memórias de juventude.
Rejubilou das mulheres que comeu e disse que era viado demais pra
comer um homem. Valdecir se interessou pelo papo e deu corda pro
velho, ele explicou:
--- Entenda, vivemos numa sociedade herdeira dos romanos, pra
quem dar era desmoralizante mas comer não, assim, o cara pra ser macho
tem que comer tudo que é mulher que ver e também os homens. Quanto
mais macho o cara que ele comer, mais macho ele vai estar provando que
é, porque subjugou o outro macho. Isso sempre foi assim, e eu até
tentei, mas descobri que não dava. Sempre fui um frouxo, sabe. A
simples visão de um cu peludo era suficiente para me encher de terror
e nojo. Meu pau jamais ficaria duro com uma coisa daquelas, daí que eu
resolvi admitir que era viado demais para aquilo e preferi me ater
somente às mulheres.
Um silêncio pesou no bar. Alguns fregueses enojados, outros
horrorizados, outros eufóricos e outros batendo palminhas e
comemorando por serem mais machos que o velho. Valdecir constituía um
grupo a parte, o grupo dos pensativos.
O velho voltou a pedir suas cachaças e a beber. O bar parecia aos
poucos se recuperar daquele depoimento sem maiores traumas. A música
de fundo era suportável e os fregueses voltavam a pedir suas cervejas
e martinis e cachaças e vinhos e cubas e caipiras.
Foi quando entrou o índio. Todo cheio de roupas e penas e
tiras de couro. Sentou no balcão e foi ordenando em tom alto, mas
quase incompreensível, tamanha a embaralhidão de suas palavras: "ô
barman, dá mais conhaque aqui".
E começou a xingar e praguejar em palavras estranhas que
vinham provavelmente de alguma língua indígena.
Valdecir brilhava os olhos. Olhou pro índio, olhou pro velho,
olhou pro índio e, por fim, olhou novamente pro velho. Disse: "velho,
eu vou provar que sou o mais macho daqui! Vou comer aquele puto
daquele índio. Aposto que ele vai gritar quando eu meter o tranco na
birosca dele".
E foi isso que aconteceu. Agora, mesmo depois de tanta
bebida, eu começo a lembrar do que se passou. As imagens traumáticas
que me fizeram apagar da memória aquela noite agora voltam, e posso
ver tudo. Depois disso, os momentos, os clarões de memória. Valdecir
pulando no índio, a roupa do índio arrrancada, a cara de desespero do
nativo já deposto de tudo pela civilização, prestes a perder também a
honra, o rosto vermelho de Valdecir, a briga, as pregas do índio, e
por fim aquele velho símbolo da dignidade e resistência sul-americana
correndo pelado pelas dunas em desespero.
Um momento de silêncio percorreu a sala em que o detetive me
interrogava. Ele tentou tragar do cachimbo, que acabara apagando
enquanto eu contava a história. Comecei a passar mal por causa da
memória que agora voltava com suas cores vivas e cruéis. O detetive
parecia não estar muito bem. Ele disse somente: "Obrigado. Isso
esclarece muito".
Abriu a porta e me deixou sair. Depois disso fui pra casa me
encher de cachaça até que um dia eu consiga, finalmente, esquecer tudo
de novo.
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