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Quinze meses

Definitivamente, eu precisava fazer algo aquela noite. Isso nunca fora problema antes, mas hoje o médico proibira-me de beber e me masturbar por uma semana. Eu não agüentaria, eu sabia que não agüentaria, mas precisava ao menos resistir um pouco antes de provar ao mundo o fracasso que eu era.

Michele, minha editora, viria me ver amanhã, o que me dava a bosta de doze horas pra terminar os poemas que estariam no próximo livro. Os remédios me davam alucinações, mas longe de ajudar isso só piorava minha escrita, uma vez que não conseguia acertar nenhuma tecla. Reli todos os livros de Bukowsky, divaguei sobre Fausto Wolff, passei a tarde e a noite inteiras com a Shenia na cama, que mesmo assim ainda insistia em ficar ao meu lado e continuava se esfregando em mim. Por fim, liguei para todos que conhecia, justo eu que odiava telefone.

Definitivamente eu precisava de um drinque, urgente. Mas o médico proibira. Punheta então nem pensar, mais uma e eu morria, ele falou. Amaldiçoei cada maldito minuto que escorria lentamente ao meu lado, naquele universo estranho chamado realidade. Precisava trabalhar, mas sabia que sem um trago jamais conseguiria. Resolvi então que, se não podia ajeitar minha vida, deveria arruinar a de alguém.

Hoje era quinta, lembrei que Aleph, o único escritor da cidade que estava sem comer ninguém há mais tempo do que eu, se prepara a semana inteira decidido a traçar sua ex-namorada hoje. Já tinha quinze meses que ele não comia ninguém e todo seu dinheiro e esperança se depositavam na noite de hoje.

Eram onze horas, saí correndo de casa com medo que fosse tarde demais e ele já estivesse agarrando a pobre moça. Moça não, na verdade tinha cerca de cinqüenta anos, mas, afinal de contas, tinha buceta, e isso era tudo.

Chequei suado, ofegante, e toquei a campainha. Com um pouco de sorte poderia contar com a habitual calma que ele tinha nesses assuntos e ele estaria ainda longe de chegar na moça. Abriu a porta:

- Anacreonte??!

- Daí Aleph, tudo bem. Posso entrar?

- Pois é... eu e a Raquel tamo vendo uns vídeo... lembra... eu tinha comentado contigo sobre hoje... quinta-feira...

- Pô, que massa! Que filme que é? Romance?

- ... ahn... Pornô Nacional... do interior paulista.

- Legal, me amarro em Pornô Nacional, é bem realista. Tô nessa.

Forcei uma passagem entre a porta e ele, que, surpreso, nem opôs resistência. Chequei na sala e Raquel me olhou meio que curiosa, surpresa e envergonhada. Na tela uma buceta enorme jazia inerte devido à pausa do vídeo.

- Oi, você deve ser Raquel.

- Sou.

- Sabe se tem cerveja por aí?

- Tem... tem. Na geladeira.

- Valeu.

Peguei uma cerveja na cozinha e quando voltei Aleph fez as devidas apresentações.

- Anacreonte, essa é a Raquel. Raquel, Anacreonte. Ele é editor comigo numa revista literária... veio dar um pulinho aqui e vai ficar alguns minutos pra bater um papo.

Um olhar constrangido cambaleou entre os dois. Ele sentou-se no sofá com ela e sentei-me no chão encostado na perna dos dois. A cada dez minutos eu levantava e pegava uma cerveja, afinal o médico não iria nem desconfiar. Talvez até me masturbasse depois, mas por enquanto o medo de morrer era ainda muito grande.

O filme acabou. Acendemos a luz, desligamos a tevê e sentei-me de frente a eles na poltrona vaga. Falava verozmente, procurando prender a atenção de Raquel que, de tempos em tempos, balançava a cabeça concordando comigo. Aleph me olhava com raiva e desespero e soltava bocejos endereçados a mim.

A noite foi boa. Por fim, Raquel deu-nos boa noite e se foi. Eram três da manhã. Aleph parecia com sono e profundamente deprimido. Parecia estar prestes a matar-me, mas mentalmente esgotado demais para conseguir fazê-lo. Talvez estivesse assim estático por analisar seriamente os prós e os contras de matar-me. Talvez analisasse os prós e os contras de matar-se. Talvez estivesse simplesmente prestes a desabar em desespero pela iminência de mais quinze meses sem comer ninguém ou estivesse simplesmente prestes a explodir.

Decidi não esperar para descobrir. Pedi licença para ir ao banheiro, pegando mais uma cerveja no caminho, e na volta tratei de despedir-me e dar o fora. Ele nem sequer mexeu-se, ficou apenas sentado, em choque, no sofá.

Terminei a cerveja e fui pra casa o mais rápido possível. Amanhã eu veria Michele. Eram quase três e meia, mas agora eu já tinha sobre o que escrever.


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