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Requiem para uma paixão

O bar, de tão acostumados ficávamos, tornara-se já uma companhia invisível, aconchegante. O bar era velho. Madeiras podres cobertas de tinta branca sustentavam a estrutura que ameaçava um dia cair. Mas, talvez porque lá nós fôssemos sempre, ele se mantinha de pé, resistindo à ação do tempo e ao frio da noite.

No verão, quente, muitos turistas se acrescentavam aos já habituais fregueses do lugar, o que tornava o bar um pouco mais exótico ainda. Excêntrico, seria a palavra adequada. O bar, apesar de ficar na lagoa, o centro etílico-poético-cultural de Florianópolis, tinha um nome espanhol, La Sielva Tropical, um dono gaúcho, saído diretamente do Bom Fim, e uma ambientação já decadente, algumas bananeiras espalhadas ao redor, numa vã imitação de clima tropical que nunca vingou direito. A idéia original era atrair os turistas que por ali passavam de dia a caminho da praia, mas como o público fiel era composto em sua maior parte pelos bêbados que por ali gastavam sua madrugada, as bananeiras acabavam servindo de refúgio seguro para o pessoal que fumava um baseado ou queria simplesmente apagar bêbado.

O bar ficava de frente pro mar, em meio às casas de pescadores. Não, nenhum pescador ali morava, apenas guardavam seus barcos, que eram muitas vezes encontrados de manhã com alguma poça de vômito ou preservativo usado. As mesas e cadeiras ficavam na parte iluminada, ou semi-iluminada, uma vez que a única parte realmente iluminada era a cozinha do bar, cobertas por um telhadinho velho. Por ficar à beira-mar, a luz da rua não conseguia alcançar essa parte do bar, que era na verdade os fundos. Estando de frente para o mar, de costas pra rua, podia-se ver uma moita de bananeiras à esquerda na escuridão e outra a direita, um pouco mais longe, perto do banheiro. Além das moitas, restava somente a escuridão da noite e das sombras feitas pelas casas de barca, já quase dentro do mar. Era uma trilha, às vezes larga, às vezes tão estreita que mal se passava, onde se acumulavam bêbados apagados e insones, vomitando, desmaiando, chorando, transando, fumando uma ponta sofrida de maconha ou experimentando algum novo alucinógeno ainda não conhecido.

O bar era vivo. O bar pairava sobre todos dando a dinâmico do negócio. O bar se movia, tinha cores, gritos, espasmos de choro ou alegria inusitada. O bar era o ponto comum que unia aquela massa, às vezes inerte, às vezes disforme, às vezes fervilhante. Era o local onde um bêbado e uma cocainômana podiam se encontrar para falar da beleza das coisas comuns, e se amarem sem com isso se esquecerem do marido e esposa que ficaram em casa dormindo. O bar era muito mais que bebidas, pessoas, petiscos, mesas e cadeiras. Era mais que uma abstração financeira movimentando dinheiro. Era mais que o desespero e a alegria dirigida ou indirecionável que ali se extravasava ou continha. Era mais que um porto seguro contra o resto do mundo que pairava logo ali, logo após a saída.

Quando o sol nascia, e casais começavam a chorar, não pela separação, mas por terem um dia se encontrado, o bar ia gradualmente se esvaziando, como um tanque cujo ralo é lentamente aberto. O sol nascia trazendo, além da claridade, a consciência de tudo que fora feito durante a noite, o cair de novo em si. É por isso que quando o sol estava finalmente brilhando no céu forte, o bar estava já praticamente vazio. Era difícil demais ver o sol, todos preferiam ir pra casa dormir, para retornar no dia seguinte como se nada ocorrera, ou acordar com o alívio de uma amnésia parcial de uma noite apagada pelo excesso de álcool. Os que dormiam no chão, não viam também o sol nascer e acordavam de manhã, sem lembranças ou pensamentos, perdidos de si, indo pra casa dormir ou pro trabalho, já atrasados.

Por fim, os fregueses todos se iam, alguns melancólicos, outros ainda exaltados, inconscientes do fato de que o sol já nascera, condenando a todos, ou livres demais para aceitar qualquer tipo de condenação. O bar fechava suas portas e janelas, sua face branca, e ia dormir.


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