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Porque às vezes a merda é tão grande...

...que nada mais resta que sentar de cuecas na frente da tela bebendo cerveja.

Eu costumava querer ser escritor quando era criança. Era muito estranho, eu era uma criança tola. Depois, quando adolescente, eu costumava querer ser escritor. Tomava porres e dormia no mato e perdia meses de aula sem que me fizessem falta. O grande truque era comparecer todo dia no colégio para dar um oi aos professores. Dessa forma, sempre me viam por perto e não notavam que eu não assistia mais às aulas. Antes das oito da manhã eu já ía para um bar do centro beber. Eu era um adolescente tolo. Escrevia poemas, imaginem só.

Mas esse tempo não existe mais. Nem a infância.

Hoje há apenas eu, a tela, minha Weizenbock, seis pés de manjericão que crescem na minha horta mesmo dentro de um apartamento e uma mangueira que já chega nos meus ombros.

Acho que nunca tive noção de coisa alguma na vida. Faltou bom-senso, desde o início. Faltou bom-senso aos meus pais, ao se casarem e terem filhos. Faltou bom-senso aos militares, ao darem um golpe e implantarem uma ditadura no país. Faltou bom-senso aos insurgentes de Portugal, ao exigirem a volta do Rei, que culminou com a separação entre as terras de cá e as terras de lá. Faltou bom-senso aos governantes, que delegaram poder às religiões e suas inquisições. Faltou bom-senso ao homem primitivo que inventou a roda, sem saber das muitas mortes por atropelamento no futuro.

Há uma quietude e uma gratificação em se estar acordado de noite. Silêncio. Cessação. A necessária ocultação do resto da humanidade por algumas horas. O cérebro humano não consegue suportar a existência em meio a tantos semelhantes. É preciso enganá-lo, despistá-lo. É preciso fazê-lo crer por alguns minutos que todos estão mortos e aquele indivíduo que porta aquele cérebro carrega em si a sina de ser a última esperança da terra, com Charlton Heston e tudo. Mas sem os rifles da decrepitude senil.

É preciso meio quilo de coragem e um quilo de banha humana para se conhecer o paraíso.

É preciso uma boceta enigmática pendendo no portão à espera do deciframento.

É preciso um cachorro, uma espada e um cavalo para se viajar no tempo.

É preciso parar de massacrar os outros povos como já tantas vezes fizemos desde Tramandaré.

É preciso parar de verter sangue pelas concavidades destinadas ao sêmen.

É preciso que Sator e Arepo tenetenham opera rotas.

É preciso recuperar o sentido antes que esse conto se torne pastiche pós-moderno.

É preciso rejeitar o antigo e o novo e o que nem chegou ainda.

É preciso matar o maldito imbecil que inventou a frase idiota de que viver é preciso.

É preciso silêncio.

...

White noise.

...

Chiaço

...

Tuiuiú correndo desnudo na selva.

...

É preciso mil horas de digitação para chegar a uma frase redonda e perfeita como a frase acima, totalmente atonal, inverossímil e impensada.

Eu realmente cheguei a acreditar, na infância, que seria um escritor. Como são tolas as crianças. Cheguei a acreditar nisso na adolescência. A doce tolice da juventude. E se por vez em quando ainda hoje pratico tal temeridade, se deve apenas à senilidade precoce.

Há momentos em que até mesmo as Weizenbocks acabam. Essa é a hora do fim dos questionamentos. Da cessação do pensar. De abrir uma Ale. De ligar o vento, ficar de cuecas e perder uma hora de vida na frente da tela. Porque às vezes a merda é grande demais para ser digerida.


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