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Capítulo 2, seção 3: dos malefícios do Álcool

Ademar era um sujeito estranho. Sempre implicava com minha mania de chamar as coisas de tragédia. "Tragédia é o que aconteceu com o Zezinho", ele sempre dizia. "Que tragédia?", "deixa pra lá...", ele respondia. E sempre isso. Não havia uma única vez em que alguém falasse em tragédia que ele não falasse do tal Zezinho. Mas dizer o que havia acontecido, nunca.

Aquilo começou a me incomodar. Uma coisa que foi vindo aos poucos, mas de forma persistente, como quando você está andando num trecho desconhecido da cidade e aquela vontade de cagar vem. Você aperta o passo, começa a correr e cuidar os becos em busca de um bar ou qualquer outro lugar para se aliviar, e nada. Você está na iminência de cagar e sabe que logo vai ter que soltar aquela coisa toda senão uma tragédia maior acontece.

A coisa foi assim, a princípio. Começou a dar aquele comichão e aquela vozinha chata no fundo do cérebro que me fazia ficar pensando naquilo. No trabalho, na rua, no banheiro, no bar do Xanke, bebendo, fumando, cafumando (que, pra quem não conhece, é a arte de dar uma cagada fumando, assunto ao qual dedicarei outro conto posteriormente).

Um dia o intimei. Encontrei Ademar bêbado no Xanke e comecei a lhe pagar doses de uísques. Quando estava quase caindo comecei a insistir:

--- Ademar, quem é o Zezinho?

--- Zezinho, não sei de nenhum Zezinho...

--- Como não porra? Você vive falando dele!

--- Ah, cara, deixa isso pra lá...

--- Pra lá o caralho, quem é o Zezinho?

--- Anaca, pô meu, é sério, você não vai querer saber.

--- Sim, eu quero.

Ele parou e me encarou com olhos fundos. De súbito sua feição pareceu sóbria, a despeito de toda a bebida que tínhamos tomado. Ademar adquiriu uma expressão dramática que nunca havia reparado, parecia travar uma luta consigo mesmo para revelar aquilo. O que quer que fosse, o assunto parecia realmente incomodar ele muito.

Ele baixou os olhos, como se tomado de súbito por uma vergonha ou raiva do mundo. Acendeu um cigarro. Pediu outro uísque. Eu olhava pra ele quase desmaiando sem respirar, esperando por aquela resposta sem ousar interrompê-lo em seu conflito interno. Virou o uísque e tragou o cigarro até o fim, balançando de vez em quando a cabeça como se falasse com alguém. Ele parecia preparar a própria morte. Com voz rouca, por fim, começou a falar:

--- Meu cunhado...

--- Cunhado?

--- É... hm... é...era meu cunhado.

--- Ahan.

--- Ele gostava dum boquete sabe. É... era fissurado na coisa. Costumava dizer que se não recebesse um boquete, era como se não houvesse transado. Costumava a trair minha irmã e eu sabia. Ia a puteiros imundos dos mais baratos, daqueles que invés de quartos tem só uma salinha com sofá onde os clientes recebem ali o que serviço pelo qual pagam, e não comia ninguém. Queria apenas um simples boquete antes de dormir. Tinha crises de insônia, sabe. Não dormia sem um boquete, ficava apenas sentado tremendo na frente da tevê, imaginando como seria o próximo. Com o tempo, não sei se a coisa começou a lhe pesar no bolso ou na consciência, afinal minha irmã já estranhava o distanciamento sexual dele, e ele começou a ficar obsessivo por seu novo projeto. Autofelação, era como chamava, e passava dia e noite fazendo alongamentos em qualquer lugar que estivesse para tentar alcançar e chupar ele mesmo o próprio pau. Só falava nisso dia e noite. Até que foi numa festa e bebeu até cair. Sonhou o sonho de sua vida: que conseguia finalmente alcançar o próprio pau e chupá-lo com ardor e alegria. Ia tudo muito bom, até que acordou no banheiro da festa mamando na trolha do dono da casa. Tentou parar e levou de quebra uma esporrada na cara. Depois disso se matou, deixando uma carta pra mim contando a história que tratei de queimar depois de lê-la. E nunca até hoje, depois de dez anos, eu havia contado algo para alguém.

A voz de Ademar diminuiu num tom rouco e a história terminou com apenas um fio de voz restando. Um silêncio pesado como a morte pareceu cair no bar, apesar de todo o som alto e as pessoas que gritavam, alheias à história. Ademar virou o uísque que restava. Olhei para o meu copo e não tive coragem, tive medo de desmaiar com a bebida e meu estômago embrulhou e enrugou como bunda de vó. "Tenho que ir", eu disse. "Eu também", disse ele, "se chegar tarde em casa hoje a patroa me mata". Aquela noite cheguei cedo em casa. Nunca mais vi Ademar. E por muitos anos parei de beber. E nunca mais falei em tragédias. E quando alguém falava em tragédias eu me limitava a dizer "Tragédia é o que aconteceu com o Zezinho", sem dar maiores detalhes ou explicações da frase para ninguém.


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