Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Dor abaixo

Eu ainda cuspia os últimos pedaços de macarrão na privada. Um gosto de porra de sapo que me deixava enjoado. A tesoura ainda estava ali, na sala ao lado, pairando no ar como uma ameaça. Castração: a palavra final.

Os esquimós cavavam um túnel em meu estômago, tentavam sair. Aquilo lá devia ser mesmo um lugar horrível para se viver. As paredes se apagavam com as vogais de um lusitano e senti que ia desmaiar. Ela repetiu que me amava, com lábios de gesso e mãos de plástico que alisavam minha nuca. Alguma coisa estava dando errado.

Conheci Marilúcia numa farmácia. Chovia, era noite, era perto de casa. Tudo o que eu queria era umas bagas quaisquer que me fizessem dormir, mas o farmacêutico teimava em não vender sem receita. Marilúcia tinha uma.

Entrou na farmácia, comprou as bagas e saiu.

Fui atrás e comecei a implorar para dividirmos a cartela. Quis pagar o dobro do preço. Chegamos no prédio dela e ela me deixou subir. Resistiu à princípio, mas quando comecei a beijá-la, cedeu.

Marilúcia era datilógrafa numa repartição. Ganhava sem trabalhar pois tinha um amparo judicial que proibia que a obrigassem a trabalhar em outra que não fosse sua área, e digitar era algo muito diferente, conforme ela me explicara. Podia causar doenças de trabalho como LER e portanto ninguém mais a requisitava depois que as velhas máquinas de escrever haviam sido aposentadas.

Depois da trepada avancei na cartela. Tomei metade, sem sequer me preocupar com os efeitos. Queria dormir. Há três dias não dormia. Marilúcia não.

Marilúcia queria trepar. Sabia que eu iria embora no dia seguinte. Sabia que eu jamais aprenderia sequer seu nome direito se dormisse agora. Dissolveu uns estimulantes que tinha numa dose de uísque e me deu, disse que ia me ajudar a dormir. Marilúcia não queria dormir essa noite. Algo saiu errado.

Primeiro foi a tontura. Comecei a suar. Cãibras. Dores e contrações fortes no estômago. Comecei a chorar. Finalmente vinha à tona tudo o que eu tinha feito nesses três dias sem dormir.

Então as visões começaram. Marilúcia me masturbava e sorria maldosa enquanto eu tremia choroso no sofá, incapaz de me levantar. Pela primeira vez percebi que era monstruosa.

Depois de meia hora de masturbação sem efeito, ela trouxe a tesoura e pendurou num gancho do teto. Levanta esse troço ou eu corto fora, ela disse.

Tudo isso eu mal percebia. As paredes falavam comigo e me gritavam palavras de culpa pelo que eu fizera. A minha Lila, minha doce Liliana estava morta, cobrindo de sangue minhas mãos. Eu mesmo faço, foi o que eu disse a ela quando me contou da gravidez. Nenhum de nós tinha a grana e deixei que minha arrogância me guiasse. Era o melhor estudante nas aulas de anatomia, era o que os professores diziam, tinha mão firme, corte preciso e completo domínio do conhecimento sobre o corpo humano. Seria um ótimo cirurgião quando me formasse, diziam eles. E faltavam apenas seis meses.

Não sei se por causa da tesoura no teto ou dos estimulantes, mas a ereção veio. Marilúcia cavalgava como animal selvagem em cima de mim e tudo que eu via eram pontos luminosos e torrentes de sangue que escorriam e pingavam do teto baixo que tentava me esmagar. Estava tudo distorcido. O tempo parara e o espaço se contorcia e convulsionava em espiral. Revi o sangue que começou a jorrar de dentro Liliana. Eu havia bebido demais, estava nervoso demais e havíamos brigado antes que eu a sedasse a força.

Por seis horas tentei fazer o sangue parar. Eu fizera algo demais. Inconscientemente ou acidentalmente. Mantive ela sempre sedada para evitar que continuasse gritando sempre que acordava. Injetei muito mais do sedativo do que o necessário. No segundo dia constatei que estava morta.

Meu corpo doía muito, numa sensação distante. Marilúcia cravava as unhas na minha barriga e me arranhava, até quase sangrar. Quando comecei a vomitar ela parou de galopar, furiosa e me levou aos gritos e empurrões pro banheiro.

Não sei o que ela me deu. Não sei porque tudo chegou nisso. Só sei que sinto pela primeira vez como é ter um choque sistêmico no sistema corporal. Metabolismo destruído e funções vitais em colapso.

Caído no chão do banheiro senti pela primeira vez a sensação de fim. Numa última piscada em delírio ainda vi sobrepostas a imagem da tesoura no teto da sala e o corpo de Lila coberto de sangue. Finalmente descobri pela primeira e última vez como é morrer.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski