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A meia maçã

Nasci.

Nasci e olhei para os lados. Vi as flores, árvores e frutos maravilhosos que brilhavam a minha frente. Vi tudo e pus-me a vagar para conhecer o mundo e suas belezas.

Presenciei as auroras e conheci as belezas do mundo e de mim mesmo. Jovem eu era e vagava pelo mundo com braços e pernas que me moviam velozmente. Ainda assim, jovem eu era e sozinho eu estava.

Então senti a fome. Senti a fome pela primeira vez e, recém-nascido que eu era, maravilhei-me, espantei-me e idolatrei aquela dor que me corroía, aquele desejo que me impulsionava.

Passei a vagar rápido e rápido, cada vez mais, pelo mundo, em busca de algo que matasse minha fome, pois só eu estava, recém-chegado eu era nesta vida e, embora a beleza das flores e do mundo alegrasse e alimentasse meu coração, ainda assim essa dor me corroía sem que eu soubesse como saciá-la.

Aí então outra pessoa me surgiu. Tão espantado eu fiquei, ao ver pelo primeira vez outra pessoa, que acreditei que nenhuma outra razão houvesse para minha existência senão o fato de haver um ou mais outros semelhantes a mim.

Fiquei maravilhado e cerquei-lhe. Os raios de sol banhavam-nos e jovens éramos ambos. O mundo todo era repleto de cores e belo e, como parte dele, nós também éramos. Olhei para a pessoa que me devolveu o olhar. Olhar vazio, sem expressão.

Mil dúvidas surgiram em minha cabeça, mas não havia linguagem, não havia fala e eu não tinha como perguntá-las. Olhava a pessoa e sabia-a igual a mim, porém olhá-la nada me revelava pois as expressões e linguagens corporais não ainda existiam.

Estendeu a mão e nela reluzia brilhante uma maçã. Cravou-lhe as unhas, dividindo-a em duas metades, e deu-me uma. Pôs-se a comer lentamente e devagar e, quando provei minha metade, entendi que aquela maçã era o que eu precisava para saciar minha fome, que há anos já eu vagava pelo mundo buscando saciar.

Eu comia gulosamente minha metade. Era doce e suculenta e, embora insuficiente para matar minha fome, amenizava minha dor e mantinha-me contente. Entendi logo que aquela maçã mataria minha fome, porém apenas metade era minha, a outra não me pertencia.

Olhei minha companhia e pus-me a examinar-lhe comendo. Comia lentamente e por mais que eu examinasse não podia descobrir nem compreender se comia para matar também a fome ou apenas comia casualmente. Eu queria falar de minha fome, mas não havia palavras que pudessem explicá-la. Eu queria pedir mais, mas não haviam palavras que expressassem o que eu queria.

A pessoa olhava pra mim, porém igualmente não me compreendia, pois não haviam ainda expressões faciais, linguagens corporais que nos possibilitassem entendermo-nos. Para ela eu era apenas outro ser, igual a ela, porém indecifrável e incompreensível.

Eu queria a outra metade, pois sabia que somente a maçã inteira saciaria a fome que me fazia sofrer e errar pelo mundo. Eu sabia, de certeza, que a maçã inteira era meu único caminho para a saciez, porém minha não era a outra metade, e certo era que eu não desejava obtê-la se isso implicasse na fome de meu semelhante.

Contentei-me a comer então minha metade e lado a lado comemos, durante anos, cada qual sua parte. Sem nunca estar satisfeito, porém um pouco aliviado da fome. Tão facilmente perto do alívio e da saciez, porém olhávamos vaziamente um pro outro, sem compreendermo-nos, e sem que eu nunca pudesse saber se me permitiria que eu pegasse a outra metade ou não, pois não existia meio segundo o qual pudéssemos nos comunicar.

Passamos anos comendo juntos, cada qual sua metade, e eu descobri que só havia uma maneira que eu pudesse obter a outra metade, pegando-a simplesmente da mão de meu semelhante. Envergonhava-me por querer a maçã inteira, deixando a outra pessoa sem nenhuma, porém eu não sabia sequer se ela queria a outra metade. Talvez ela quisesse também me dar a outra metade porém não o fazia com medo de que eu não a quisesse. O único meio possível era simplesmente pegar a outra metade para ter a maçã completa, mas com isso eu arriscava a infelicidade dela em prol da minha.

Eu queria e muito chorei por não desejar tão intensamente a maçã, que eu chegasse e simplesmente arrancasse a outra metade para tê-la toda para mim. E chorei também por não haver palavra no mundo que me possibilitasse perguntar e comunicar-me com o meu semelhante. Não havia sequer uma palavra que representasse ou falasse da maçã. Chorei e por não ser egoísta e simplesmente obter a maçã para mim, obtendo assim minha saciez e felicidade na vida. Eu me perguntava: "Você deve pegar a maçã? Você pegaria a maçã numa ocasião qualquer? Você pegaria a maçã?"

Comíamos lado a lado, e desejei intensamente nunca ter recebido aquele presente. Assim eu teria vagado pelo mundo até que numa árvore eu encontrasse uma maçã inteira para mim. Eu queria ser inundado pelo desejo de "eu quero inteiro e não pela metade" e decidir de uma vez por todas obter a outra metade da maçã, ou abandonar aquela cena, aquela vida em que eu estava e partir em busca de uma outra maçã, uma maçã que fosse inteira para mim.

Mas eu era fraco. Era fraco de espírito e forte de amor pela beleza do mundo. Eu contentava-me com a metade e isso impedia-me de partir em busca de minha própria maçã ou tomar das mãos de meu semelhante aquela maçã que ele comia, aparentemente sem vontade, e sem demonstrar nenhum desfrute.

Perguntava-me de novo: "Eu devo pegar a maçã?". Pois jamais conseguiria deixar aquela cena pra trás e restava-me apenas pegar ou não a maçã que a outra pessoa ao meu lado também comia, em silêncio, sem expressão, invisível, indiferente. "Você pegaria a maçã?" eu perguntava de novo, a cada um de meus eus interiores.

Cansava-me a vida, pois ela traduzia-se num enigma causado pelo olhar vazio ao meu lado, sem que houvesse como entender, como responder. Tudo que eu sabia era que o enigma se traduzia na pergunta "você pegaria a maçã?" que eu fazia a cada eu meu. E assim vivo eu, sem a resposta, certo de que um minuto antes de morrer obterei uma compreensão, não uma resposta à pergunta "você pega ou não a maçã?", mas talvez uma certeza de que para minha companhia eu fui apenas um espelho, um sonho, que ela viu chegar, dar-lhe meia maçã e partir, sem nunca responder-lhe a nenhuma de suas questões, nem nunca ter conseguido falar-lhe.


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