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Fotos íntimas

Acho que foram as moscas na janela de minha infância que sempre me impressionaram. Aquele chiaço irritante, o calor grudento e aqueles bichos burros de cabeça monstruosa insistindo em se chocarem contra o vidro.

Às vezes eu as ensacava, chegava a prender dez ou doze no mesmo saco plástico e depois esperava-as morrer. Tinha que ser transparente, senão não dava pra assistir. Ia dividindo o saco em pequenas celas para cada mosca, separadas por um nó. Chegava a condensar algumas gotículas de umidade em algumas celas, o que ajudava a trasformar a mosca num ser mais grudento, bzzando desesperada.

Foi no hospital, vinte anos depois, que conheci Acácio. Ele era como uma mosca se batendo contra uma janela tentando sair. Nunca apreendia a verdadeira percepção do mundo porque insistia em bater contra um muro invisível, uma espécie de obsessão que impedia seu avanço.

Lá dentro, tudo limpo demais. Asseado demais. Silencioso demais. O cheiro de desinfetante e as cores mortas e o avental cor-de-rosa que me obrigavam a usar. Acácio tinha dez anos a mais que eu e só o que fazia era rezar e olhar pela janela lamentando. Na sala um monte de pais dizia que seu filho esteve perto da morte, mas depois da cirugia deus o salvou. Se eu fosse médico eu mandava todo mundo enfiar seus deuses no rabo. Mas os médicos não existiam, só existiam quando o paciente morria: "a gente rezou bastante, mas a equipe médica não era muito boa" explicava uma mãe lamuriosa num canto.

O Hospital era como um cigarro, mas é ele quem te traga. Logo surge a manhã, mal o sol nasce e você já está lá. Quando se dá conta já passou mais de mês e você está o tempo todo lá. Era pra você ser um visitante, mas já come com os funcionários, escova os dentes com eles, e deita nas camas de doentes quando acha alguma vaga. As linhas desenhadas no chão seguem o modelo do metrô de Londres, e com o tempo você começa a gostar de umas e temer outras.

Acácio não. Ficava lá o dia inteiro parado na janela. Suspirando ou murmurando, aflito com alguma desgraça de algum parente ou amigo que um dia ele fora lá visitar. Acácio e a janela, olhando pro sol, talvez tentasse sair como as moscas. Acácio era um desses sujeitos que sempre tem uma irmã feia tentando te agarrar. Sempre que ela chegava na sala de visitas eu ia na lanchonete tomar uma cerveja ou comprar um chiclete ou fazer qualquer coisa que me tirasse dali. Cerveja quente e mulher feia são vícios de juventude que com o tempo perdemos, mas cerveja quente eu até que ainda encarava.

Voltei para a sala e Acácio ainda estava lá. Acácio e a janela e o lado de fora e os murmúrios e as moscas de minha infância e a irmã feia zoando pela sala. Acácio nunca conseguiria descobrir o mundo exterior sozinho, estaria sempre batendo na janela. A vida era tão útil para Acácio quanto uma piscadela para um morcego cego. Acácio jamais conseguiria fazê-lo sem ajuda. Cravei uma das mãos na cintura da calça dele e a outra nas costas do casaco grosso. Ergui-o com uma força descomunal que drenei da agonia de vê-lo ali penando a não sei quantos anos e arremessei-o pela janela. Acácio atravessou o vidro e voou da janela do terceiro andar até o chão. Finalmente Acácio estava livre.


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