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O enterro de Rutwana Wers

Eu estava bêbada! Já era tarde! Devia ser ali por volta de umas duas ou três (quatro?) da tarde. O Telefone tocou:

- ALÔ!!

- Alô, Patrícia!

- É sou eu, porra! Que é?

- Conhece o Rutwana?

- Quem?

- O Rutwana?

- Não, tchau!

- Peraí!

- `Foi porra?

- Tu conhece sim! É aquele cara que vivia tomando porre e teimava em passar as mãos na tua perna lá no bar. Lembra?

- Ahh... o Wers... Que tem? Que tem ele?

- Bem... ele morreu, cê não sabia?

- Porra!

- Pois é, tão velando o corpo dele agora. Ele vai ser enterrado às seis horas lá no lixão.

- Porra, que merda! Vão enterrar o cara no depósito de lixo. Tá certo que ele era asqueroso e tal, e que um túmulo tá com o preço lá pela hora da morte, mas, porra, aí também é sacanagem.

- Não, meu, porra. Cê tá bêbada não?

- E daí? Que cê tem a ver com isso?

- Sou teu namorado porra!

- Qual deles?

- Como assim qual deles? Cê tá me corneando? É o marcelo!

- Ah, sei lá, já tive tantos. Eu tinha esquecido, foi mal.

- Bom... como eu ia dizendo, o cara tá sendo enterrado no lixão, ou seja, naquele cemitério que fica na frente do depósito de lixo municipal. É o único que tem lá. Não tem erro.

- Cê vai?

- Não, não posso. Tenho que fazer uns troço aqui ainda.

- Tá bom. Tô indo lá então! Tchau.

- Tchau...

Desliguei o fone... era capaz daquela conversa não acabar nunca. Droga. Wers era um caco mas era legal. Um bêbado simpático até. Principalmente quando começava a exaltar minhas coxas.

Bem eu tinha que ir lá. Não que eu quisesse ou devesse, mas eu tinha, entende? Sei, lá, é o tipo de sentimento que não se pode, ou não deve explicar. Eram os anos de bar, chame assim se quiser, mas o fato é que existe um tipo de solidariedade e empatia entre nós bêbados (e bêbadas!) que não se encontra em nenhum outro lugar. Até que eu ia sentir saudades dele, é... é verdade. Quando o bar fechava e os outros caras já tinham todos caídos de bêbados, ou ido embora vendo que não podiam comigo, só restava eu e ele, bebendo numa mesa, conversando até o amanhecer. Ele tinha o dobro da minha idade, o dobro do meu peso, e muito mais feio que eu. No entanto nossa conversa sempre foi de igual pra igual, mesmo nível, sei lá. Algo que rolou desde o primeiro dia e, verdade seja feita, eu até que o invejava.

Sequei o uísque, terminei o charuto, peguei mais uma garrafa, peguei um, não, dois maços de cigarro comum, pus tudo na bolsa e saí. Desci a escada, saí pra rua, dobrei a esquina, plagiei Bukowski, andei mais dois quarteirões, peguei o ônibus, desci do ônibus e enfim estava lá. Viver era um tédio. Tudo era lento, tudo demorava, tudo era longe, tudo requeria um esforço grande demais para que valesse a pena ser feito. Durante o trajeto um terço da garrafa já fôra.

Tava sem um puto no bolso e fumando um monte. Entrei no velório. Um grupo de desconhecidos no canto contava piadas, aquele era o meu grupo. Cheguei pra eles e fui seca:

- Tem cerveja aí?

Me olharam embasbacados. Tanto pela pergunta quanto pelo meu corpo. Afinal um corpinho de dezenove anos não era nada para se jogar fora. Me apontaram um carro dum cara, no qual escondidas estavam as latinhas. Intuição de Bêbada nunca falha.

- Pensando melhor acho que vou ficar com meu uísque!

Tirei meu doze anos da bolsa e comecei a beber. Era bom ser esnobe. Talvez até demais... impressionei tantos os caras que não tardou a começar chover um monte de perguntas pra mim. Inventei uma história sobre estar grávida dum filho do Wers, o que fez com que ficassem constrangido e esquecessem um pouco de mim. Fui um pouco mais pra frente pra ver o corpo (que nem lembrava mais que estava lá) e tinha um padre rezando:

- Blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá.

Puta que pariu que tédio, que nojo! Wers deveria estar se revirando no além se estivesse vendo aquilo. Sempre dissera aos amigos que a única coisa que não queria era um padre no enterro dele. Das mil recomendações que ele sempre dera a única que aquele bando de inútil lá trás foi capaz de cumprir foi tomarem um porre no enterro dele... e nem isso faziam direito.

Destampei a garrafa e emborquei de novo um golão. Meio litro já tinha ido. A única coisa nesse mundo que não demorava tempo o suficiente era bebida e sexo. Eram também as únicas coisas que ninguém conseguia me dar o suficiente.

Do lado do caixão uma mulher enlutada chorava. Filhodaputa. Aquela era a mulher dele, o filhodaputa era casado então. E em dez anos de bar ele nunca tinha deixado escapar um pio sobre isso. Dez anos ele freqüentou aquele mesmo bar, pena que só fui conhecê-lo nos dois últimos. A viúva se debruçava e chorava sobre o corpo... patético. Aquele maldito devia estar em algum lugar rindo de tudo isso.

O padre encerrou e começaram a levar o caixão. Pobre padre. Se deus existia não seria por muito tempo. Rutwana (chamava-o de Ruth para provocar) odiava deus e religião até o último fio de seu ser e jurou que, se quando morresse, descobrisse que deus existia, iria dedicar até o último dos dias de sua existência para destruir o maldito idiota que criara toda aquela sacanagem que era o mundo e a humanidade.

Juntei-me novamente aos caras, que agora mais bêbados estavam mais suportáveis. Desceram o caixão, tamparam e alguém me indicou a lápide. Aproximei-me e pude ler:

Aqui jaz
Rutwana Wers
Bom pai
Bom marido
Bom amigo
e, sobretudo,
Bom mentiroso

Ele mesmo tinha feito o texto para a lápide. Sacana. Tinha bem o estilo dele. Pelo menos nisso os inúteis da cerveja não tinham sido tão inúteis assim. Fecharam o maior pau, mas no fim a mulher concordou em deixar.

O enterro acabou. Junto com ele também uma de minhas carteiras de cigarro. Abri a outra. O uísque tava quase no fim. Despedi-me dos caras...

- Ahh.... já vai?

- Já!

- Mas recém tá começando a festa...

- É.. eu sei. Mas tô ocupada, sabe como é.

- Qual teu telefone?

- Pode deixar, eu apareço.

- Aparece mesmo?

- Claro! Eu entro em contato com vocês, tchau!

Voltei. Mesmo trajeto de novo até em casa, só que inverso. Tédio. Tinha ainda um resto de uísque e de cigarro. Marcelo ia demorar pelo menos uma hora... saco. Me tranquei no banheiro e decidi me masturbar, junto com o uísque e o cigarro, esperando que fossem suficientes. Até que o dia não fôra assim tão ruim. Sempre podia ser pior. Meus dedos aceleravam e o uísque baixava cada vez mais. É, velho Wers, parece que tinha chegado seu fim. Cirrose provavelmente. Dedos aceleravam. Mais tarde Marcelo ia chegar, ia ter que dar mais umazinhas com ele pra poder manter a criatividade dele. Acelereção. Cigarro, pulsação. Ééé Wers... Adeus!


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