Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

O insondável dia em que eu se dei bem

Foi realmente estranho. Naquele limiar entre o dormir e o acordar é que percebi aquela enorme Águia Careca, parada ao fundo do sonho, como um figurante de filme pornô barato. A primeira coisa que pensei foi: "O que diabos uma Águia Careca está fazendo posando de figurante num filme pornô barato?" E foi bem nesse instante que percebi que os olhos dela não só estavam voltados pra mim, mas cravavam-se em mim como facas afiadas, como lâminas com profundidade de abismo.

Acordei gritando em agonia e banhado em suor, como era comum no verão, mas dessa vez parecia haver um motivo. Sim, num daqueles raros momentos de clareza que acomete nossa mente quando o efeito do álcool passa, pude perceber nitidamente que em minhas memórias, há muito, faltava um pedaço, um único pedaço, que sempre estivera lá, ao longe, me contemplando: a insondável Águia Careca.

Como um estalo, um despertar para a consciência, pude começar a relembrar de todos os sonhos em que ela estivera lá, sempre ao fundo, sempre nos minutos antes do despertar, sempre alheia ao conteúdo barato de meus sonhos. E pude perceber mais, mais real, mais tangível. Lembrei-me das incontáveis vezes em que ela passara voando por mim e meus sodales, quando bebericávamos gentilmente à beira da Lagoa, no amigável Bar do Gank.

Havia algo ali. Tinha de haver uma explicação. Minha cabeça era agora invadida por uma enxurrada de lembranças das vezes em que a Águia Careca sobrevoara o local. E era sempre por volta das cinco e meia ou seis da manhã. E era sempre quando pedíamos a saideira.

Tem gente que vê vultos. Gente que vê almas. Gente que vê aliens. Gente que acredita em um ou mais deuses. Mas comigo não, uma maldita Águia Careca. O que ela queria? O que significavam aqueles vôos noturnos ao longo da saideira e aquela presença brochante em meus sonhos na fronteira do pré-despertar?

Tinha que haver algo. Um significado. Um aviso.

Lembrei do nome do bar. É claro. Bar do Gank tinha este nome por causa de alguma velha história indígena, um índio jovem chamado Gank (é claro) que é seqüestrado por outra tribo, e uma vez tendo conseguido escapar e vingar-se de seus captores, busca refúgio no pântano onde eram enterrados seus antepassados. Ao amanhecer é descoberto por membros de sua tribo, que ao verem-no saindo do pântano o matam por ter desrespeitado a tradição. Tudo bem, até aí tudo bem, mas onde que a águia entrava na história?

Eu não sabia, mas talvez se eu fosse até o bar descobriria. Em verdade, a única pessoa que podia me ajudar era um índio velho antigo freguês do bar, mas desde que certos acontecimentos ocorreram há alguns anos, nunca mais fora visto.

Eu estava numa sinuca. Condenado ao eterno olhar da Águia Careca.

Saí andando a esmo pela cidade, como fazem normalmente os alcoólatras quando não têm dinheiro suficiente para beber de dia e precisam guardar os trocados para a noite. Bem, isso se referia aos de primeiro estágio, como eu, pois no segundo já não havia mais distinção entre dia e noite, apenas quente, frio, muito frio e hospital, com pequenas variações que incluíam cemitério.

Andei por algumas horas, suando embora todo o líquido acumulado em noites de cerveja e a gordura de anos de sedentarismo. Eu tentava tomar consciência de algum significado, mas continuava ainda a enxurrada de novas recordações da ave.

Não coincidentemente escurecia quando cheguei no bar. Estava cansado e suado e fedendo, o que me fazia sentir como homem. A travessia do morro a pé, inevitável, pois ficava no caminho, sempre deixava meus braços e rosto coçando. Alguma coisa na maldita vegetação.

Gritei na frente do bar até que me deixaram entrar, faltavam ainda algumas horas até abrir. Pedi pra ir ao banheiro e lavei-me na água fria até a coceira passar. Voltei ao salão do bar que estava deserto e atravessei a série de portas que levavam ao fundo. Lá vi o dono que parecia trazer algo nas mãos e dizendo:

--- Veja só, essa filha da puta tá sempre aqui por perto incomodando. Hoje acertei-lhe uma pedrada que acabou com tudo. Será que isso dá um assado?

Apoiou numa pedra o pescoço da Águia Careca desmaiada e com um golpe certeiro do facão degolou-a. Fiquei pro jantar e pro resto da noite. Nunca mais vi a Águia Careca, quer em sonhos ou na vida real, tampouco descobri o que ela significava ou percebi melhoras na qualidade de meus sonhos. Mas ensopada ficou uma delícia.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski