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Lena

A cabeça latejava um pouco quando sentei. Era um bar velho, acabado, caindo aos pedaços, freqüentado apenas por cornos e viados. Eu, que ao que me consta nunca fui nenhum dos dois, me sentava, em caso de dúvida, sempre no lado dos cornos.

O garçom era até simpático, daquele tipo de cara que parece ter um cartaz colado no peito escrito: esmurre minha cara! A chuva fina e miúda que caía não combinava com o clima. Estava calor, porra, era quase verão, essa chuva não devia estar aqui.

Tomei minha dose habitual e fui pra rua, mais deprimido um pouco do que quando entrara. Era tudo um grande beco de lixo mesmo, para onde fluíam nossos viscosos humores.

Caí no chão. Vomitei minha bílis sobre uma poça d`água enquanto os carros passavam zunindo perto da minha cabeça. Senti a voz feminina me tocando a mão no ombro e me pedindo pra levantar. Olhei pra trás, tentando entender afinal como pode uma voz ter tal mão, sendo por si mesmo um ente feminino tão belo, incorpóreo, magistral.

A vida não me foi ruim, não. É, não foi mesmo, o mundo é que tinha sido, e era tanta bosta girando em minha mente embriagada das três da manhã, que disse a mim mesmo: ggkkgggg...!

Não fez muito sentido, eu sei, mas era exatamente assim que eu me sentia quando terminei de me levantar, dando de cara com a boca macia dona daquela voz: Lena. Lena! Sim, era isso, Leeeeenaaa...

Lena fora a única mulher que eu realmente pisara feio na bola. Depois que terminamos nunca mais tinha eu conseguido revê-la. Muitas cicatrizes. Cortar os pulsos não adiantava, ao menos isso ela tinha me ensinado.

--- Oi Lena, tão linda quanto antes!

--- Anaca, anaca, tão bêbado quanto antes!

Um silêncio cortou o ar. De pé, de frente pra ela, olhando seu rostinho louro, angelical, sofrido, percebi que o mundo não tinha mais sentido mesmo. Eu estava derrotado: metade dos cem anos, sem metade do fígado, meio sem vida. Eu precisava de alguém que cuidasse de mim aquela noite, uma mulher que tirasse meus sapatos e me prometesse que o sol nasceria amanhã quando eu acordasse.

--- Lena, Lena... senti tanto... tanta falta. --- Ela me olhava com um ar da mais absoluta pena, como quem encontra por surpresa um fogão estragado que jogara no lixo --- Lena, passa essa noite lá em casa.

Ela baixou a cabeça, pareceu estar chorando um pouco, ou escondendo algo que parecesse uma lágrima. Em voz baixa, murmurada, falou.

--- Claro... claro, vamos. Eu passo a noite contigo.

Abracei ela e fomos andando calados. Eu agradecia ao destino pelo tremendo mal-entendido que recém ocorrera, uma vez que passar a noite lá em casa e passar a noite comigo podem ser consideradas duas coisas bem diferentes.

Ela ligou meu carro e dirigiu. Florianópolis estava ficando estranha, grande demais para alguém conseguir ver a si mesmo. Se o fim chegava, que ao menos fosse breve, como num acidente ou num tiro na cabeça.

--- Você sabe que sou? --- perguntei pra Lena.

--- Uh-hun --- confirmou ela, com voz entediada.

--- Você sabe o que eu já fiz?

--- Uh-hu!

O silêncio preenche de novo o ar enquanto a mulher que um dia amei me trata como se um dia amar-me pudesse. Um grande sigilo de culpa e alívio pairava cúmplice entre nós: o cara que a ensinara a viver ensinava agora a morrer.

Revi minha vida. Como num desses momentos de propaganda de seguro, revi tudo aquilo que a vida me trouxera, exceto as partes ruins. O que praticamente tirava tudo.

Lena, Lena. Não podia acreditar que estava revendo-a de novo, e justamente assim, justo nessa situação. Tirava mentalmente cada parte da roupa dela que protegia o corpo escultural. Lena, ela sabia quem eu era: eu era Anacreonte von Giq, o maior bêbado patético ainda vivo do mundo, um dos últimos nascidos na última grande leva populacional do país. Mas mais importante, ela sabia o que eu havia feito: duas coisas, a primeira foi um livro de poemas péssimo, o qual dediquei solenemente ao meu filho ou filha que fora abortado, e a segunda foi a madrugada vermelha, na qual eu cantara a internacional socialista num boteco, acompanhado por Fausto Wolff.

É. A vida era realmente uma beleza. O mundo é que não era.


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