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Uma noite perfeita

Quem nunca copulou com um ganso talvez não tenha a mínima idéia do que eu estou falando. Quem pode culpar as crianças por seu julgamento precipitado?

Precisos ou não os fatos, eu precisava ir naquela estréia. Era Shakespeare, mas o diretor resolvera interpretar a peça original à sua maneira, o que queria dizer que provavelmente era uma merda. Assisti a duas horas de peça para descobrir que a grande modificação no roteiro da peça era que o infante príncipe invés de apaixonar-se pela mãe era apaixonado pelo pai.

Uma bomba, como eu previra, e quase fui expulso do teatro quando comecei a rir na hora do suicídio de Ofélia, que nesta versão se matava por ter descoberto que seu amado tinha um caso com seu irmão, Laerte. Triste e hilário, transformaram o bardo inglês em novela mexicana.

Além disso havia apenas uma modificação a mais de peso, que era o motivo de minha ida. O diretor incluíra nas cenas um coral, que recheava as cenas com uma música que dava explicações psicanalíticas nonsense. Era um coral de homens semi-nus, cujo um dos membros era um amigo biólogo que me fizera prometer que ia ver sua estréia no mundo das artes. Não tive como recusar.

Saí mais cedo da peça, uns cinco minutos antes do fim, quando o príncipe e seu oponente no duelo confessam em público seu amor mútuo. Saí deprimido, fazendo notas mentais de deixar proibição expressa antes de morrer proibindo a encenação de qualquer conto meu. A crítica no dia seguinte arrasou a peça, e este talvez tenha sido o motivo pelo qual meu amigo tenha se decepcionado com o mundo teatral e seguido carreira acadêmica.

Na volta para casa, naquela noite estranhamente fria para um janeiro, uma chuva fina começou a cair. Merda, era tudo que me faltava.

Não, não era tudo ainda. Para fugir da chuva e chegar mais cedo tive a infeliz idéia de pegar um caminho que eu julgara mais curto. De fato, mais curto era, mas mal eu entro na ruela e vem um bando de gansos com suas armas mortais, bicos na altura exata de um saco humano. O ganso, meus amigos, é o legítimo predador do homem, mais perigoso que o leão ou o tigre, até mesmo que as mulheres.

Eu estava bêbado, como sempre. E eu perdera meu óculos, como sempre acontecia quando eu bebia demais. Mas quem poderia deixar de beber depois de ser obrigado a passar duas horas de tormento numa peça ruim?

Comecei a correr e sentir mil dentadas e tormentos que me infligiam os gansos. Caí no chão uma, duas, três, até que na quarta vez eu não mais levantei. Estava molhado e enlameado e sujo e deprimido e fedendo e arrasado e derrotado por um bando de gansos praticamente sem cérebros. Protegi o saco e deixei que suas bicadas fizessem todo o trabalho sujo. Então o álcool fez um click na cabeça, e tudo escureceu.

Acordei no quintal de uma casa. Eu estava deitado sem roupas no chão, mas quentinho. Em cima, em baixo e ao meu redor dormiam comigo cerca de uma dúzia de gansos. Eu fora adotado. De alguma forma eu sentia que em meu sofrimento aqueles pobres animais sentiram minha dor, e se apiedaram de mim e me deram abrigo e foram minha família. Eu me sentia em comunhão com a natureza e com o mundo, a chuva passara e o sol brilhava forte, e uma alegria sofrida me fez chorar por me sentir tão magnanimamente aceito pelo mundo em que eu vivia pela primeira vez.

Foi quando um vulto me fez um frio subir a barriga e cortou meu barato pós-hiponga fora de época. Uma criança melequenta, daquelas que deixa um fio de ranho escorrer do nariz até o chão ou as roupas ou o que quer que esteja no caminho, me observava. "Meu pai disse que você é uma bicha nojenta", ele falou. Balancei a cabeça tentando fazer sentido das palavras dele. Será que ele não podia notar que eu era um ganso agora? Que eu pertencia ao bando?

Uma voz de homem ecoou no pátio "Tonico, sai já de perto dele, pode ser perigoso". Um cara com revólver na mão. O dono da casa, presumi. Me manteve lá, parado, pelado, sem poder sequer coçar as mordidas das pulgas que os gansos me passaram. A polícia me levou para a DP e até que não apanhei tanto. Fui solto sob fiança e nunca mais fui ao teatro de novo. Nunca consegui explicar o que houve naquela noite, mas e quem acreditaria mesmo...


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