Uma obra de arte
Tudo começa com um sonho estranho. Um índio soprando um instrumento
musical enquanto, através de um ritual solitário de autogratificação
sexual, eu, dentro de uma catedral gótica, me esporro sobre um desenho
de corpo inteiro de Judite da Baviera, que durante o século IX
desposara Luís o Piedoso e fora mãe de Carlos o Calvo.
Confesso que aquilo tudo me perturbou. Eu andava meio impressionável
com os sonhos ultimamente, embora não fossem nem um décimo do bizarro
que eram no passado.
Comecei a visitar galerias de arte, leilões de colecionador,
vernisage de pintores médiuns cambalacheiros, mas nada me fazia
encontrar aquele desenho perfeito das carnes de Judite da Baviera.
Um dia, enquanto contemplava os desenhos arquitetônicos da planta da
grande obra que marcou o império de Justiniano II, a cloaca maxima,
senti-me compelido ao sono e posso dizer que desmaiei.
Desta vez lá estava de novo o mesmo índio, soprando um instrumento
rudimentar diferente, cuja música poderia soar agradável para qualquer
ouvido, mas a mim surtia o sinistro efeito de aumentar minha ânsia e
desespero. Estávamos num deserto e um grande falo despenca logo à
minha frente. GRANDE. Mais ou menos do tamanho de quatro ou cinco
elefantes empilhados. Eu me aproximo para investigar e sinto o cheiro
forte que emana da poça de esmegma e sangue que começa a se formar e
dissolver as rochas ao redor. Vermes do tamanho de jibóias escavam
verdadeiros túneis dentro daquela maça gigantesca de carne podre, e
talvez seja o tempo passando mais rápido ou eu passando pelo tempo
mais devagar, mas tudo parece acontecer numa velocidade incrível até
que o vejo o falo sendo devorado e consumido pelos vermes e o tempo e
tudo que sobra é uma pequena na pilha de poeira da qual partem os
vermes voando em douradas asas em direção ao sol que nunca se move.
Olho para o índio de novo e ele ri de mim. Quantas vezes já não terei
pedido desculpas pelos crimes de meus antepassados e contemporâneos,
mas como uma maldição ele continua lá, rindo, até que acordo chorando
numa poça de suor e fezes. Acho que me descontrolei de novo durante a
noite, e isso não é agradável.
Fico sabendo que me encontraram sob torpor, numa espécie de desmaio
que beirava o coma, e me tiraram da mesa onde estudava as maravilhas
romanas para me deitarem em meu leito. Meu imundo leito.
Novo banho. Novo dia. Talvez um fio de esperança possa explicar o
sonho ou o índio ou o falo ou os vermes ou as ligações cabalísticas
que regem o projeto da cloaca de Justiniano II. Experimento um
misticismo transcendental fresco quando o sol da manhã invade o
banheiro e quase pode me explicar porque o cano rachado do meu esgoto
faz com que caia merda no vizinho de baixo quando dou descarga.
Mas logo toda a idéia, toda a razão, todo o brilhantismo somem,
restando eu, a merda e meus sonhos. Descubro porque a cabala romana
utilizada na cloaca é falha: os malditos cretinos não tinham sequer a
porra do zero.
De forma que respondida essa questão pude esquecer a história romana
e voltar ao doce sonho que anteriormente me perturbara mais, o doce
desenho da doce Judite.
Comprei pincel, tinta, grafite, tela, e um monte de coisas que acabei
nem usando. Com um disco de música medieval pude me dedicar ao
trabalho de desenhar o que me lembrava dos contornos dela. Fugazes
como são os sonhos, lembrei pouco coisa, mas como nunca soube
desenhar, isso não faria diferença mesmo. Por fim executei o ritual
com que sonhara e deixei correr o líquido branco sobre a tela. Deixei
secar e vendi por uns cinco mil mangos.
Até hoje não consegui explicar os sonhos, nem porque vieram ou porque
se foram. Mas pelos menos consegui pagar algumas boas dívidas que tivera.
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