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As flores de Luxemburgo

Merda.

Merda, merda, merda. O cú sangrando, uma faca na mão e um cadáver no chão não é exatamente o tipo de situação que te dá muito tempo para pensar.

Mesmo assim, em pânico, minhas pernas recusavam a fuga. Eu pensava em Goethe, que segundo um técnico de futebol era um grande poeta francês. Pensava mais precisamente no seu conterrâneo, Thomas Mann, mais precisamente no filho dele, Klaus Mann. Em verdade tudo pairava em torno da figura de Fausto, que vendera a alma ao cão em troca de poder, dinheiro, fama, xana, e demais coisas que os homens costumam querer.

Jello Biafra entrou no recinto, viu a cena e disse: "too drunk to fuck..." Deu meia volta e saiu. Isso me levou de volta aos pensamentos sobre Goethe, que dos três citados fora o único que escrevera um final feliz para aquilo que deveria ser uma tragédia.

Mas Goethe era um otimista convicto, assim como Hegel, e essa era a grande divergência que o separava dos românticos: estes eram melancólicos, tristes e trágicos demais. Goethe acreditava na salvação, na possibilidade de redenção. E é engraçado como foi justamente um discípulo de Hegel que levou o espírito de Goethe adiante, o jovem Marx, que leitor fervoroso de Goethe elaborou sua própria teoria onde a humanidade estava condenada, mas acabava se salvando graças à sua própria capacidade de superar-se e, na catástrofe, gerar a classe que conduziria à salvação: o proletariado.

Mas claro que isso nada adiantava agora, pois ele nunca fora flagrado com o cú sangrando, a faca na mão e o presunto no chão. Assim como nunca vivera o suficiente para ver a classe trabalhadora ser traída pelas direções que ela mesma criara e elegera, mas a social-democracia de sua época já prenunciava a futura traição.

Olhei em volta e tentei enumerar as opções: 1- cortar minha própria garganta, o que levaria à conclusão de que o morto era a causa de meu cú sangrante e este a causa do suicídio. 2- Fugir, como quem nunca fugiu da lei antes, aceitando todas as conclusões que pairassem sobre meu ser. 3- Ficar e contar a verdade, mesmo que desacreditada.

Era uma situação em que eu perderia de qualquer jeito, o que estava em jogo ali era como perder menos. Ouvi as sirenes de polícia ao longe e pensei em como isso tudo estava fadado à desgraça. Ao contrário de Fausto eu não vendera minha alma a ninguém , exceto a um amigo de confiança em troca de umas poucas cervejas. Logo eu não teria a chance de salvação, no máximo uma nova história.

Eu estava no bar do Sang, quando o sujeito apareceu. O bar do Sang fora por anos o melhor bar da cidade, lar do rock, lar do mecânico underground, lar das bandas, lar de todos os desvalidos da noite. Foi naquela noite que eu descobri uma das muitas maneiras de se descobrir hemorróidas. Parecia uma simples cólica, aquela cagada básica, se não fosse pelo barulho, um pequeno barulho ecoando no vaso sanitário mais alto que o som ambiente: ping, ping, ping. Três gotas. Três malditas gotas que te fazem olhar pra baixo e ver o sangue na água. Três malditas gotas delatoras, que te revelam a verdade sobre aqueles comichões misteriosos.

Aí entra o cara. Você já nem lembra mais dele, mas há cinco anos ele prometera cortar teus bagos, e hoje decide fazer valer a jura. Vem com a faca pra cima de você, espumando pela boca, e você, num instinto primitivo de sobrevivência do mecanismo de transmissão dos seus genes, tira a faca e corta de fora a fora a garganta do cara. E você está ali parado, no banheiro, calças arriadas, você e o defunto, quando começa a chegar a aglomeração e reparar no sangue que escorre entre suas pernas. Você empaca sem ter o que dizer. Lembra da piada do cara que comeu a vaca e dos dois gaúchos que andavam pelados no mato, quando o primeiro pára de súbito e pergunta: "Que isso tchê? Virastes viado?" e o outro que vinha atrás responde "Agora virei, não?". Há certas coisas que não há como explicar.


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