Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Estranho mundo

Eu era daqueles, sabe, que achava que felicidade era possível. Nunca passava frio ou fome em demasia, nunca fora currado numa esquina escura ou pedira esmolas. Isto é, este último sim, mas mais por farra que por necessidade, então não conta. Apesar de que pude comprar uma refeição com o dinheiro e meu companheiro de esmolagem ainda agarrou uma doadora... valeu muito a pena, almoço e quase-sexo gratuitos, não é todo dia que se consegue isso na adolescência.

Tudo que eu podia lembrar, quando me acordei, era da pele negra, da bunda balançando e dos fios de buceta aparecendo ao luar. Era uma visão linda e utópica. Diferente daquela na qual eu acordara.

Uma ventania fudida baixara no acampamento depois que todos se recolheram. Eu, na minha barraca solitária, me vi arrastado no meio da noite. A culpa fora minha, desde o princípio, que achara desnecessários os espeques.

Acordei num campo de trigo, ou centeio, não lembro ao certo. Caminhei meia hora até que cheguei numa estrada de poeira amarelada. O calor era infernal. E infernal era um zumbido que me acompanhava o tempo todo. Depois de mais uma hora eu cambei gritando "eu sou bravo, eu vou resistir".

Depois de chorar como uma garotinha por mais outra hora, é que reparei no barulho. Desde que eu chegara ali, aquele barulho me acompanhara. Um zumbido, um gemido, um grito de qualquer espécie, contínuo e eterno.

Entrei no milharal (ou trigal, centeial, whatever) à minha esquerda e esperei aos poucos o barulho se aproximar. Era aterrorizador. E vinha. Vinha. Vinha. Vinha. Cada vez mais alto. Cada vez mais próximo.Cada vez mais pulsante, assustador.

Parecia um grito selvagem de animal desconhecido e quando passou por mim, que esperava, tocaiando, agachado, pulei de encontro. Derrubei no chão uma criança, um garoto loiro, de seus dez anos.

--- O que fazes berrando como um louco nesse laranjal desde a aurora?

--- É meu trabalho, senhor. Há muitos pássaros que vêm aqui comer o pêssego, de forma que é preciso mantê-los afastados.

--- Mas que idade tendes?

--- Quase dez, meu senhor. Meus pais morreram num massacre misterioso, e desde então, esta família que possui a propriedade teve a bondade de acolher-me. Pagam-me dez centavos por dia de trabalho, mas apenas trinta centavos por dia de hospedagem, de forma que, embora minha dívida tenha crescido um tanto ultimamente, sei que hei de ganhar o suficiente para pagar-lhes.

Ai caramba. O garoto era mais burro que um pau de marmelo, mas tinha lá seus dez anos, então é desculpável. Falei para o garoto escravo:

--- Sou um rei de terra distantes, acompanhe-me e te darei o que precisas.

Ele se impressionou e começou a me seguir, tomamos a estrada rumando ao sol, e nada do que eu fizesse ou disse o impedia de continuar com aquele zumbido esdrúxulo. É preciso espantar os pássaros, ele dizia.

Eu já conseguira desligar o cérebro, quando encontramos na beira da estrada um metalúrgico bêbado. A mulher dele acabara de fugir com um cantor de pagode e ele dissera que sua vida estava arruinada, nunca mais amaria alguém como ela. Falei para ele:

--- Sou um rei de terra distantes, acompanhe-me e te darei o que precisas.

O metalúrgico escorneado resolveu acompanhar-nos, seguíamos, ele chorando, o garoto berrando e eu mancando.

Chegamos num velho circo. O dono apareceu e disse que todos haviam se ido, apenas ele ficara, sem saber o que fazer. Então lhe disse:

--- Sou um rei de terra distantes, acompanhe-me e te darei o que precisas.

Continuamos andando. O garoto ainda berrava e corria, o metalúrgico ainda estava escorneado e o dono de circo não se arriscava a dizer nada.

Aquilo tudo era muito estranho, mas muito familiar ao mesmo tempo. Eu sempre gostara de road movies e me sentia num deles agora. Continuamos sempre em frente, seguindo a estrada de poeira amarela.

Por fim chamo num boteco velho e cheirando a mofo. Era ele nosso destino. Demos uma última mijada na rua e entramos. Era o melhor bar do mundo.

A cerveja era gelada. As mulheres bem gostosas... ou quase. O som era aceitável. E havia uma atmosfera incrível que nos fazia sentir em casa. O ambiente era mágico, e o dono também.

Chamei-o na mesa, e ele perguntou:

--- Pois não?

--- Quero voltar pra casa!

--- E eu com isso.

--- Disseram que você podia ajudar?

--- Eu?

--- É. Disseram que se eu seguisse a estrada de poeira dourada o mágico me ajudaria.

--- Ora garoto, você não é o primeiro que chega aqui assim. Mas sinto muito, só temos cerveja Iceberg, não posso fazer mais nada.

--- Não, você não me entendeu, um vendaval veio e me levou embora, preciso de você para voltar pra casa.

--- Não, garoto, você é que não entendeu. Você é apenas um personagem numa história de baixa qualidade. Tudo não passa de um plágio. E descarado, ainda por cima. Você tem um garoto que servia de espantalho na plantação, completamente idiota (veja, está rolando no próprio mijo agora), um metalúrgico sem coração e um domador de leões covarde. Eu é que me recuso a participar dessa história, antes que eu seja processado por participar como cúmplice num plágio. E ainda por cima, mal feito.

Nisso ele deu as costas e saiu.

Olhei em volta, sentindo o suor escorrer pela testa, e deixei a tensão dominar-me.

Era verdade. Era tudo verdade. Minha vida estava perdida, desperdiçada.

Pus-me a chorar numa mesa, quando uma ex-mulher apareceu.

--- Anacreonte, você aqui? Toma, segura meus sapatos que eu vou lá dançar.

Disse isso e desapareceu no meio da multidão, me deixando com um par de sapatos vermelhos na mão. Sapatos vermelhos. Sapatos vermelhos. Isso parecia acender um luz qualquer no meu cérebro, mas eu não sabia qual. Então o garoto retardado falou:

--- Os sapatos, você tem que usá-los para voltar pra casa.

Era verdade. Parecia que o garoto finalmente conseguira aprender a pensar. Num canto o metalúrgico agarrara alguém, e percebi que, finalmente, ele voltara a amar. E, por fim, percebi que ele agarrava o domador de leões, e se há de convir que tem que ser muito macho para dar para um metalúrgico.

O dono do bar voltou e disse:

--- Essa história está cada vez pior, preciso pedir que você vá embora.

Saí nas ruas, sozinho. Calcei o sapatinho vermelho e, num ponto escuro, botei a perna de fora, com apenas a perna e o sapato aparecendo, e consegui uma carona.

Quinze minutos depois estava em casa. O cara que me deu carona insistia em passar as mãos nas minhas pernas, até que eu lhe mandasse parar que eu queria saltar. A mulher dele estava viajando, fora da cidade, segundo ele dissera. O dono do bar estava certo. Eu era apenas parte de um plágio mal-feito em uma história de baixa qualidade. Mas uma coisa aprendi para sempre: não há lugar como nosso lar.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski