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A monotonia do ser

Um corvo bicava incessantemente na janela, bicava e berrava. Berrava grasnidos incompreensíveis. Aquele era o corvo de Poe! Sim, somente o corvo de Poe haveria ele de ser, infernizando-me justo no momento em que me encontrava em meu luto marital.

Corri eu pela sala. Gritando e berrando, como se eu fosse um louco. Virei todos os móveis, quebrei as cadeiras, mas ele continuava lá, impassível, espiando-me do parapeito da janela. Trigésimo sétimo andar.

Num acesso febril iluminou-me, de repente, uma idéia. Corri para os restos da mesa e de lá retirei os dentes dela. Iluminei-os e espalhei-os pela sala. Mas péra, essas dentes não eram dela, mas sim de Poe. Talvez fossem só os molares, mas isso era o Véras e não eu. Que seja! O que importa é que, quando vi, ele continuava ainda lá, sem ao menos importar-se com os dentes.

Foi Poe que mandou-te, ave sombria, eu bem sei! Então, como que de repente, o ar tornou-se denso, como recheado de incenso e vi uma forma surgir em minha frente. Haveria de ser, certamente a figura de Poe, disse eu, somente isso e nada mais.

Foi então que das linhas e curvas espectrais pude distingui-lo. Lá estava: Duque de Caxias em pessoa, de pé no meu apartamento.

Ó mortal, venho aqui para incumbir-te de uma missão pli importante. Duque de Caxias! Exclamei eu. Não, venho de um planeta distante, e após profundo estudo de sua pessoa decidimos que esta seria a melhor aparência sob a qual deveria eu me manifestar. As palavras faltavam-me, calei então.

Tu mortal. Tu tivestes a vida estudada e foste escolhido para carregar nossa mensagem. Exigimos imediata rendição do povo humano e subserviência a nós, caso contrário sereis exterminados. Por que eu? Indaguei eu confuso. Porque tu, ó mortal, fugiste a guerra e mesmo assim tornaste-te presidente de teu país. Teu país cujo poder militar e econômico ultrapassa em muito os outros.

É um engano! É um engano! Tarde demais, a figura já começava a se esvanecer no ar, com ar garboso. Mas por quê o corvo, então? Que corvo? Disse-me ele antes e enfim sumir.

Ficamos só. Eu e o corvo, que dormia agora na janela. Como tinha medo de dele aproximar-me, fui também dormir. Fora tudo um engano, eu não era presidente de porra nenhuma. O melhor que eu fazia era esquecer.

Em meus sonhos, encontrei-me novamente, como em todas as outras noites, em minha ilha tropical cercado de belas mulheres, cada uma mais gostosa que a outra. De repente um garçom chamou ao telefone, disse-me que uma ligação me aguardava.

Estranhei tudo, afinal na ilha só haviam mulheres, eu era o único homem permitido. Fui até a mansão dos telefones e lá encontrei novamente o garçom. Fui ter com ele e logo reconheci-o.

Bukowski! Bukowski, é você!.

Não, em verdade sou sua fada madrinha. Apareci sob esta forma por ser aquela que segundo nossos registros lhe seria a mais bela! Ahhh... exclamei um tanto quanto decepcionado.

Anacreonte! Tu tens uma missão, relegada a ti pelos deuses sagrados que no universo habitam. Tu deverás ser o salvador de teu povo, tu deverás protegê-lo e coordená-lo nesta jornada de resistência contra o mal! Sim! Não te espantes, não te iludas, este que aparece como teu inimigo não é alienígena algum, mas sim a própria encarnação de mal que existe no universo. Aquele é o diabo, belzebu, o cão sarnento!

Dito isso o sonho esvaneceu-se e acordei, de novo, a sós, em meu apartamento. Pra variar acordei todo mijado, como sempre acontecia.

O corvo sumira, o que será que isso queria dizer? O telefone tocou. Tentei achá-lo, porém em vão. A secretária eletrônica atendeu e pude ouvir o recado que era gravado. Anacreonte von Giq! Tens apenas mais doze horas para avisar teu povo. Agiliza-te.

Fiquei confuso. Segui os inúmeros bips, tracs, tocs e outros ruídos que emitia a secretária eletrônica. Achei. Seguindo a fiação encontrei o telefone. Telefonei ao Giq, somente eles poderiam me ajudar nisso. Liguei pro Véras que ia sempre lá em casa pra virar Steinhager com meu avô. Contei-lhe tudo. Anacreonte, disse-me ele, enchendo-me de esperança pela compreensão iminente, tu tomaste de novo daquela cachaça rosa que tu sabes que não deveis tomar, estás louco. Dito isso desligou.

Liguei ao Aleph, criador da Sagrada Cabala Giqiana. Ele haveria de iluminar-me e proferir uma profecia de seu oráculo misterioso. Mal ele atendeu começou a berrar: Mirriam! Mirriam! Plastifiquè vou lè bimbò! Pobre coitado, enlouquecera de novo. Desliguei covardemente o fone e cheguei quase a rezar, pois somente uma esperança me restava: Vidal, o gentil homem de cinza.

Vidaleza! Vidaleza! Contei-lhe toda a história, por mais insólita que parecesse, e ele ouviu-a pacientemente. Ao fim de tudo disse-me, Don Fabito, que me dizes duma cervejita num barzito.

Fomos.

Acordei no outro dia, ainda bêbado. O mundo não tinha ainda acabado. As pessoas existiam e transitavam tranqüilamente na rua. Quer dizer, pareciam nervosas, mas isso era normal, não era esse o tipo de quietude a que eu me referia.

De súbito um clarão invade meu quarto e lá está: Duque de caxias vestido de Princesa Isabel. Assustei-me. Ele iniciou então sua declaração:

Humano, vim nestes trajes pois, após longo estudo, concluímos em votações democráticas que era este o mais apropriado. Comunico-te então, que após profunda observação decidimos não conquistar seu planeta. Sua espécie é simplesmente mesquinha demais e patética demais. Tu, que és o líder de toda esta gente, nada fizeste para defendê-los. Após essas palavras, sacudiu-me a bolsa, ajeitou o decote e os seios falsos e partiu.

Logo em seguida, enquanto tentava eu entender, apareceu-me Bukowski, cantando uma bela música e dançando. Era um plágio de Marlene Dietrich em O Anjo Azul, e ele usava o mesmo vestido. Disse-me ele:

Conseguiste, ó Anacreonte. Salvaste teu povo e conquistaste para todos o bem maior, a liberdade. Poderás agora, como recompensa, receber o desejo que quiser. O que queres tu ó Anacreonte. Uma cerveja, tô morrendo de sede. Ao que eu disse isso, deu-me Bukowski uma cerveja e, piscando qual purpurina, desapareceu.

Olhei o apartamento, destruído e bagunçado. Provei a cerveja. Era ótima. Sentei-me e comecei a escrever. O mundo era mesmo uma merda, sempre aparecia algo de última hora para fazermos...


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