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Mil vulvas multicoloridas não voam sozinhas

Josuelson acordou de manhã e tomou seu café. Em outra casa, e em milhares de outras casas, outros milhares de Josuelsons, Marialvos, Sebastianos e Anacreontes tomavam seus respectivos cafés.

Eu não. Eu fitava a parede vazia. Minto. Na parede pendiam quase uma dúzia de quadros que minha mulher pintara, quem estava vazio era eu. Em algum lugar da casa ela me esperava, me aguardava, pronta para me arrastar também para um desses cafés da manhã que os normais tomam. Eu fitava o vazio da parede cheio de vulvas pintadas em todos os tons entre o vermelho e azul que existem. Bastante amarelo também. Ficava atento aos sons, precisava fingir que estava dormindo se ela chegasse.

E tudo que eu queria era um bom bocado de suco de laranja com vodka.

É o casamento, eu pensei. Dez anos morando juntos sem nenhum problema. Um dia ela tem a idéia: Meu bem, por que não vamos ao cartório e acertamos a papelada? Tudo bem, diz você tentando se concentrar na tevê. Que mal poderia fazer?

Aí é só terminar a lua de mel e vem a primeira TPM, depois de dez anos sem uma única. E depois uma por mês. E doze TPMs depois você está comendo o bolo azedo que restou da cerimônia de casamento. E você sabe que ano que vem o pedaço estará menor e mais azedo. E a cada ano pior.

Meu estômago doía da ressaca e da fome. Assim que ela saísse pro trabalho eu ia ter que levantar e comer algo. Ou beber. Nas paredes as bucetas pareciam dançar e vibrar, pareciam pássaros voando num dia nublado.

--- Benhê! Cê tá acordado??

---

--- Benhê??

Fico imóvel, olhos fechados, procurando respirar lentamente, manter a expressão do rosto adormecida. Sinto ela entrando no quarto. Pára do meu lado, me olha, se abaixa, me beija de leve na boca. Eu abro os olhos simulando sono, sorrio, digo: tchau meu amor, bom trabalho!

Ela sorri faceira, diz algo mais e vai embora. Sem apagar a porra da maldita luz, é claro.

Acompanho com os ouvidos os movimentos dela, espero a porta da frente bater. Abriu. Parece hesitante... não, fechou. Será que ela está dentro ou fora? Será que esqueceu algo? Chaves tilintando, porta trancando. Ela se foi.

Levanto de cuecas e apago a porra da luz. Quando foi mesmo que ela começou a "esquecer" a luz acesa todo dia ao sair? Não seria de estranhar se tiver sido na primeira manhã depois de casarmos.

Voltei pra cama no escuro e fiquei curtindo minha tontura e dor de estômago. No escuro as vulvas pareciam menos ameaçadoras... talvez nem estivessem ali. Minha mulher não entendia o quão importante para um escritor são os momentos de reflexão. Achava que eu era um vagabundo que só bebia e dormia o dia inteiro, escrevendo ocasionalmente um pouco, na mesma proporção em que os vômitos no banheiro. Não era assim. Nesse exato momento minha cabeça estava repleta de pensamentos importantes: Quem diabos era Josuelson? Para onde voavam as vulvas? Onde diabos eu estava? Por qual motivo não havia morrido ainda?

Senti as vulvas esvoaçarem ao meu redor e me cercarem. Minha mulher demorara quase um ano pintando aqueles bucetões, e era a única coisa dela que eu ainda curtia. Levantei, peguei uma mala, joguei umas cuecas e meias dentro, pus os bucetões, fechei a mala, pesada pra caralho por causa das molduras, e parti.


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