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A noite do Dragão

Segunda noite num puteiro do mexicano. Vestido apenas com algumas roupas roubadas de uma loja, a ressaca ainda doía forte na cabeça, desde que acordara naquela, nu e sem nada, em pleno centro da capital mexicana. A vantagem de se acordar nu numa cidade tão grande, é que há tanta gente na rua, que mal ser nota um a mais, mesmo que esse um esteja desnudo. Alguns poucos chegaram a me notar, principalmente aquele mulher que estava na minha frente numa fila por um telefone público, e que devido ao tumulto não pude deixar de ficar com o corpo grudado no dela. Ao me ver encostado nela, desnudo e salivando, achou que eu me tratava de um tarado e fez o maior escândalo. Quando a polícia chegou estava bem longe.

Mas depois de roubar as roupas e andar descalço o dia inteiro, eu finalmente iria ter minha vingança. Chegara no puteiro, e sabia que lá dentro estavam os sacanas que se aproveitaram de minha embriaguez na véspera, para me largarem no centro. Provavelmente fora o bigodudo do caixa, junto com o leão-de-chácara japonês e o velho da sanfona. Aquele velho bastardo! Começaria minha vingança por ele, pois era o único que eu sabia que podia quebrar alguns bons ossos.

Não, eu não tinha um plano. Não, eu não tinha comido nada durante o dia inteiro. E sim, eu estava tão imundo que meus pés eram uma mistura de barro e sangue, dormentes pela umidade da lama onde agora se enterravam. Eu estava num lameiro aos fundos do estabelecimento e sabia que poderia chegar por ali sem ser visto. Estava quase a dez metros da porta quando o bigodudo apareceu e gritou pra mim:

--- Ora, si no es el señor Anaquito? Adentro, venga!

Eu não entendia lhufas do que aquele piscopata dizia, e depois de romper com os dois segundos de inércia por ter sido descoberto, me joguei na lama e comecei a chafurdar, na expectativa de me ocultar.

--- Don Anaquito? Qué se passa? Venga, toma una cerveza!

Eu podia não saber nada daquela língua maldita, mas se havia algo que eu podia compreender em vários idiomas era cerveja, ou cerveza, bierre, Bier, beer, birra etc. Levantei meio ressabiado e Ramon, esse era o nome do bigodudo, veio e me disse para entrar, que tinham me visto lá fora e estavam com pena do grande amigo que eu era. Eu não entendia mais nada. Meu ódio que pulsava e exigia vingança estava por ora contido dentro de mim, como uma mangueira plástica com um nó represando a força da água.

Entrei todo enlameado. Podia perceber que o salão todo me olhava com ar de deboche. Algo acontecia ali, algo que ia além da minha compreensão, algo que era compartilhado somente por aqueles que agora controlavam meu destino.

Logo que Ramon começou a me contar o que acontecera na noite anterior, descobri o que era. Segundo Ramon, depois de beber até apagar me tiraram do quarto que eu ocupava inutilmente e me jogaram num depósito dos fundos. Lá Dolores, a puta mais feia do México que eu acreditava ter me recusado a comer, me amparara. Eu ia me encolhendo a medida que a história ia sendo contada, pois nada disso eu lembrava. Depois de levantar e beber ainda mais, comecei a pedi por ópio, até que me deram uma seringa cheia de morfina. Depois disso dizem que eu virei uma verdadeira fera selvagem e fiquei fudendo Dolores por horas até o amanhecer, quando saí correndo pelado dizendo que mais tarde voltaria para me casar com ela.

O quê? Falei espantado, não podia ser, eu nunca comeria Dolores, nunca me casaria com alguém, muito menos com ela. Eles me olharam sério e senti todo o peso da tradição religiosa mexicana (aquela cidade em específico fora o maior centro religioso do mundo antes da independência do México, com mais de duas mil freiras). Engoli seco, tremi nas bases e quase caguei. Eles me olharam e disseram que Dolores estava lá em cima, à minha espera, e que eu devia ir lá e agir como homem. Mas qual homem teria coragem de comer Dolores? Ao que eu saiba nenhum, pelo menos nenhum até eu chegar ali.

Subi as escadas com o peso da guilhotina e comecei a tentar esvendar um jeito de cair fora. Só tinha um jeito e eu sabia qual era, eu tinha que dar uma comida muito mal dada nela, explicar que a coisa não funcionaria entre nós e cair fora.

E foi o que fiz, condoídos leitores. Não fora a primeira vez que eu usara essa estratégia, embora nas outras eu precisasse me esforçar pra fingir que não estava gostando e a desculpa colar. Com Dolores foi o contrário, precisei me esforçar pra realizar o ato pois só olhar pra ela já era algo terrível, capaz de brochar o próprio deus príapo. E pra piorar as coisas, na hora em que comecei a meter, logo ouvi a infame gargalhada do velho da sanfona, tão velho que talvez nem andasse mais entre os vivos. Precisei revisar todas as cinco mil punhetas da adolescência pra manter um mínimo de ereção. Depois de gozar o mais rápido que pude, bem, na verdade eu fingi, Dolores ainda quis que eu tentasse à espanhola, mas ela nem segquer tinha peitos para eu por no meio. Ela era uma verdadeira tábua, da barriga pra cima, onde depois se tornava suporte de pelancas. Ela ainda me ofereceu a bunda, numa tentativa de me animar, e eu disse que não precisava, que estava tudo bem, que a vida era assim mesmo, que a gente não ia dar certo, etc, etc, etc.

Consegui finalmente dar o fora nela e evitar maior confusão. E ela, pra surpresa minha, foi docilmente gentil, parecia quase rir enquanto eu a dispensava. Mas no fundo de mim o asco somente aumentava, junto com o volume da sanfona debochada que tocava lá fora. Como eu pudera comer aquilo? Como eu pudera prometer que casaria com aquilo? Tudo começou a vir a tona de repente, desde a feiúra desmedida, à risada do velho, ao cheiro de mofo, à mais uma farpa que fincara no meu saco, solta da madeira da cama.

Desci de cuecas e passei pelo meio da dança no salão sem que ninguém se importasse muito com isso. Cheguei no bar e pedi uma tequila. Garrafa, não dose, que virei até a metade. Estava melhor, mais anestesiado. Ramon me perguntou se eu queria uma cerveja. Não tenho dinheiro, falei. Não precisa, ele está pagando. Olhei um americano com um jeito amuado na mesa. Como assim, perguntei.

Ontem, disse Ramon, quando o senhor falhou em sua aposta e constatamos que não tinha dinheiro, apostei com o americano mil dólares como eu conseguia te fazer comer Dolores. Ele disse que era impossível, que jamais poderia ser feito. Então bolamos o plano, largamos o senhor pelado na cidade e inventamos a história. Até este ponto o acordo com o gringo era cem dólares como você voltava. Depois mais mil dólares como além de voltar nós faríamos com que o senhor comesse Dolores. E como o senhor cumpriu, pelo que vejo, seu papel, somos muito gratos pela renda extra que proporcionou à casa. Já mandei tirar suas coisas do lixo e quando o senhor quiser partir, esteja à vontade.

Senti uma raiva que nunca pensara possível, aliada a uma sensação de estupidez e fracasso que só agora eu conhecia. Então todo o nojo e sofrimento pelo qual eu passara fora à toa, apenas parte de uma aposta maior que cobriria o fato de eu dever algum dinheiro a eles. Eu não teria forças para me vingar pois a humilhação gritava mais alto que o ódio. Apenas me limitei a pedir minhas coisas e cair fora.

Saí de lá sentindo que meu pau nunca me perdoaria daquele crime que eu havia cometido contra ele, e que eu talvez fosse o ser humano mais estúpido na face da terra, por isso teria merecido comer a mulher mais feia já nascida. Ao menos conseguira minhas roupas e minha passagem de volta pra casa, e no estado de degradação física, moral, psicológica e sexual que eu me encontrava, isso era o suficiente. Apenas queria conseguir voltar pra casa o mais rápido possível, e lá me esconder, e nunca mais sair, e nunca contar pra ninguém como fora minha viagem ao México.

"Encontre a felicidade no México!" era o que dizia o panfleto de propaganda da agência de viagens pela qual eu viajara. E eu estava a uns cem metros já do local maldito quando ainda pude ouvir, pela última vez, ecoar no ar alguns acordes de sanfona, acompanhados pela gargalhada debochada do velho.


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