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Duas lésbicas em busca de Atlântida

Eu estava lá, de novo, apesar de já ter me prometido que iria parar com a mania. Entrei no sebo e perguntei pro cara:

--- Vocês têm John Fante?

--- Não...

--- Bukowski?

--- Também não.

--- "Dois perdidos numa noite suja", do Plínio Marcos?

--- Olha, a gente tinha ele uma época...

--- E não tem mais?

--- Vendemos.

Numa última e inútil tentativa, ainda sigo perguntando a segunda parte da lista habitual:

--- E "Rumo à estação Finlândia"?

--- Também não.

--- Algum do Fausto Wolff?

--- É americano?

--- Não, brasileiro, comunista, alcólatra e decadente.

--- Não, também não.

Dou um sorriso amarelo em resposta ao sorriso amarelo do livreiro e vou embora. Tudo como sempre. E isso já me cansava. Foi na saída que o título me chamou a atenção, "Duas lésbicas em busca de Atlântida". Procurei o autor do livro e constatei que se tratava do obscuro e desconhecido Rutwanna Wers, que nunca descobri se era um árabe louco ou um indiano radicado na Alemanha Oriental. Talvez ambos.

Comprei o livro, mais para desfazer meu constrangimento de freqüentar o sebo sem nunca levar nada. Custou caro, quase três pila, o que dava pra uma garrafa inteira de cerveja num buteco. Ainda no ônibus iniciei a leitura, que solenemente avisava na primeira página, "Cuidado, leitor, pois este é o livro do desvelamento, onde sua mente corre o risco de aprofundar-se em maravilhas submarinas, ou tremer de medo". O livro, logo notei, era um clássico. Como um cara desses passou desapercebido pela Academia real da Suécia? Onde estava o prêmio Nobel quando alguém merecia? A história se trata de duas mulheres que se conhecem num cruzeiro de navio, se apaixonam e decidem se atirar juntas no mar, preferindo a felicidade na morte do que a vida em uma sociedade que não lhes compreenderia (notem que este é um livro de 1956). Após se jogarem no mar as duas são resgatadas por homens-polvo, que as arrastam para uma caverna submarina onde estranhos cogumelos produzem uma bolha de ar respirável que fica retido na caverna. Lá as duas começam a comer os cogumelos e sofrer os estranhos efeitos de sua química. Após sessenta páginas de narrativas sexuais delas entre si e por fim delas com o homem-polvo e seus tentáculos, entremeadas pelos sonhos delirantes de paraísos que lhes eram causados pelos cogumelos, elas persuadem o esgotado homem-polvo a conduzi-las até a misteriosa Atlântida. Uma vez que entre as características químicas dos cogumelos estavam as de dar aos humanos a habilidade de sobreviver à pressão submarina e de respirar embaixo d'água, chegam finalmente à perdida Atlântida, sem maiores dificuldades senão às normalmente inerentes a um livro de aventura, peixes gigantes etc. Lá o livro se aproxima de seu ápice, quando elas descobrem que a humanidade ainda sobrevivera por mil anos na Atlântida mesmo após seu afundamento, graças às maravilhas tecnológicas que lá construíra, mas fora dizimada por um povo de algas antropomórficas que hoje habitavam aquelas águas geladas. Uma vez presas, elas são obrigadas a assistir a execução do homem-polvo que revelara a elas, povo da superfície, o segredo da localização de Atlântida. A descrição da paisagem submarina daquela cidade humana gigantesca, dizimada e conquistada pelo povo-alga me fez quase verter uma lágrima de tristeza e encantamento. Estão vendo velhos caquéticos do Nobel? Isso é que é literatura de verdade. Por fim a leitura começa a descambar para um final sombrio e doloroso, enquanto narra a longa angústia da prisão em que as personagens vêem seus anos passarem e seus corpos definharem e se incharem com a água do mar e se cobrirem de estranhos fungos que as sugavam como parasitas. No último capítulo elas comem o estranho fungo e sofrem novas alucinações. E depois de mais sessenta páginas de narrativas sexuais submarinas elas descobrem que ao ingerirem o fungo que as cobriam, elas dispararam mecanismos fisiológicos de reação do organismo que tornara seu sangue uma verdadeiro pesticida marinho, capaz de matar não só o fungo que as cobria como também o povo-alga. Assim num último sacríficio, elas partem para o tributo melancólico ao povo de Atlântida de outrora, numa vingança triste e tardia da raça humana contra aqueles que a dizimaram do fundo dos mares. Rasgando seus corpos elas fogem da prisão e caminham por uma eternidade de tempo incontável no dia-noite perpétuo que recai sobre a cidade no fundo da escuridão marinha. E espalhando seu sangue pelas águas, selam com isso a tumba marinha que guardará pra sempre seus corpos ao lados dos corpos humanos que ali outrora habitaram e dos corpos do povo-alga, destruidor e conquistador por fim derrotado.

O final triste e melancólico do livro ficou gravado na minha cabeça, como o rastro turvo que o sangue vermelho deixava na água enquanto elas vagavam e o sangue-veneno se dissipava e espalhava a morte. Muito triste, era como um sinfonia grandiosa que acabasse com um baque surdo e abafado de metal.

Quando a emoção passou e me percebi de volta atirado ao meu mundo cotidiano, reparei que há muito tempo meu ônibus já passara pelo ponto em que eu saltava. Puxei a corda da campainha, desci apressado e tive que pegar outro ônibus para ir pra casa. Mas não me importei, ainda remoía em mim a dor e melancolia daquele livro clássico. Rutwanna Wers, o autor, provavelmente já havia morrido há anos na obscuridão e miséria, destino trágico a que estão fadados os grandes autores que se tornam desconhecidos. Prêmio Nobel, onde estão vocês quando alguém o merece?


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