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dias que os títulos não dão conta de narrar

Eu andava sem rumo pelas ruas, não me lembro ao certo se de Floripa, Oslo ou Leningrado. O vinho da noite anterior não caíra bem e eu fizera mais uma anotação mental de combinações desaconselháveis: vinho vô luiz com chocolate, definitivamente seus efeitos não eram agradáveis. Sentia o estômago convulsionando e a garganta amargando e o corpo suando e a mente pulsando e tudo que eu queria era andar, andar, andar e andar sem destino até que a dor amainasse. Uma música me acompanhava mentalmente e eu podia quase, quase relembrar a letra. Fragmentos esparsos de memórias vinham trazendo pequenos trechos. oh walk away...

Sim, era uma peça de música memorável. Como todas as outras do baixinho que cantava frases perfeitas como "maybe life is a losing game". Sim, ele tinha sacado a coisa da maneira certa e feito a música mais triste que já ouvira. Tentei me animar um pouco lembrando de trechos da série dos Monty Python, mas nem John Cleese iria me animar naquele dia. Eu estava num lugar estranho, num dia frio, andando a esmo, sem motivações e nada pior poderia acontecer, a não ser aquilo que aconteceu. she's looking to love you...

Encontrei Azaléia, uma das muitas mulheres que parara de dar pra mim quando notou o fracassado que eu era. Nunca descobri ao certo o que aconteceu, o fato é que com o tempo mais e mais a voz dela começou a soar cínica e seu riso falso e seu olhar de escárnio. E eu era jovem e estúpido e insensível e cretino e por mais que eu fosse completamente louco por ela na época em que estávamos juntos, eu tinha certeza que era eu quem iria acabar fazendo merda e destruindo tudo. Vinha ela em sentido oposto ao meu na rua e só notei tarde demais, quando já não era mais possível desviar ou fingir que não a vira ou fechar os olhos e seguir cantando a música que me atormentava os pensamentos. there's nothing to say...

Paramos frente a frente sem termos como desviar ou fingir que não nos vimos. Oi, oi. Tudo bem, tudo bem. Sua voz estava amarga e parecia brotar com sarcasmo. A coisa toda parecia ter atingido ela muito mais que eu. Seus olhos me acusavam e eu nem sabia ao certo do que, pois havíamos passado a maior parte do tempo bêbados. Bem, talvez não ela, mas eu sim. O silêncio era desconfortável, mas não tanto quanto as palavras secas que ela acabara de dizer. Havia ódio nela e eu me sentia tão culpado que sabia que não havia nada no mundo que eu pudesse fazer, não para me redimir, mas para parar de me sentir assim. Eu afinal fora o canalha no fim e ela parecia esperar que eu dissesse algo como "desculpa", ou "foi mal" ou um "vamos tomar um café e tentar de novo". Mas apesar da lembrança das coxas e dos peitos e dos cabelos e do aroma dela eu não me sentia com vontade de reiniciar nada mais. Por pior que eu estivesse, sabia que estaria melhor sozinho. Ainda assim aquela amargura na voz dela me incomodava e me fazia sentir pior e quase cheguei a esquecer a música que ainda mentalmente cantarolava. just turn your head and...

"Então, como vai a vida?" eu disse, e pude perceber que em minhas palavras também havia ódio e rancor e um certo cinismo de vitória porque por mais fudido que eu estivesse e eu tinha, naquele momento, a certeza de que estava bem melhor que ela. Não havia nada aparente nisso que pudesse justificar meu pensamento. Ela estava melhor vestida, melhor cuidada, melhor nutrida, melhor perfumada e quem olhasse de longe poderia até mesmo perceber certo brilho de vitória que pairava ao redor dela contrastando com meu ar de fracasso. Senti um profundo ódio que brotava em mim e lembrei de todas as noites em que estávamos juntos e eu a odiara profundamente e simplesmente fugira. Lembrei de como a voz, o riso o olhar, o aroma e as pernas delas me faziam odiá-la e de quão horrível foi o tempo em que estivemos juntos e o alívio que veio com a separação. Pensei tudo isso em fração de segundos enquanto a música continuava a tocar em minha mente e ela movia lentamente os lábios iniciando sua resposta que, ambos sabíamos, eu não estava interessado. Nem saíra ainda o primeiro som de sua garganta e eu corria pela rua, histérico de desespero e alegria, gargalhando alto ao mesmo tempo em que chorava aliviado, por finalmente entender porque nunca tínhamos dado certo juntos. walk away...


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