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Janela opaca

Tudo começou no Acre. Noite chuvosa, floresta amazônica, eletricidade suspensa.

Não que alguém tivesse desligado fusíveis ou algo do gênero. Era apenas que já era automático. Todo verão chovia todo dia. E todo dia que chovia faltava luz. No máximo umas 4 ou 6 horas.

Acre. Selva amazônica. Meados do século vinte. Eu estava de partida para a civilização. Tinha apenas quatro anos de idade e não queria partir.

Não são minhas primeiras memórias de infância, mas sim as mais preciosas.

Foi no Acre que experimentei, pela primeira vez, o prazer de matar.

Foi no Acre que aprendi o modo correto de lançar granadas de mão, embora só me deixassem lançar as de fumaça. Foi lá que aprendi a andar de bicicleta. Onde furei meu pé num ancinho. Onde me vacinei contra paralisia infantil. Onde fumei meu primeiro cigarro e alguém se meteu em sérios problemas por ter dado cigarro a uma criança. Onde fumei meu segundo cigarro e apanhei depois por causa disso. Onde tenho minha primeira memória de beber cerveja... o engraçado disso é que não era a primeira vez que a bebia, mas não me lembro de vez anterior... essa marcou porque tomei pelo menos meio copo, sendo então a primeira vez que tomei uma quantidade de cerveja maior que um ligeiro golinho.

Acre. No coração negro da selva amazônica. Nas árvores regada à sangue humano dos seringueiros assassinados.

Lá fui amarrado numa árvore pela primeira vez. Lá me acostumei a viver com cobras e aranhas. Lá aprendi a amar as baratas. Lá onde fiz meus primeiros amigos e inimigos de infância. Lá onde venci a corrida do ovo, para em seguida me decepcionar com a descoberta de que não havia prêmio para isso. E foi a única coisa que venci na vida. Lá onde, ao subir numa árvore alta demais para se descer, pela primeira vez me deparei com o desespero que voltaria constantemente a me assolar até o dia de minha morte: o de avançar demais numa coisa até perceber que não é forte o suficiente para ir até o fim, mas não tem como voltar atrás.

Acre. No lodaçal imundo do sangue inocente.

Lá foi onde pela primeira vez fiquei preso num monte de lama movediça no meio da noite e descobri que não conseguiria sair sozinho. Depois de resgatado ainda notei que perdi um pé do chinelo de dedos que ficou para sempre incorporado ao solo da Amazônia. Lá onde quase quebrei o nariz do vizinho ao fechar o portão de ferro na cara dele. Lá onde tive que assistir a aula de cuecas por ter sentado num chiclete que não saiu da bermuda. Lá onde aprendi a jogar lápis e borracha no chão para espiar por baixo da saia das meninas. Lá onde arrombei a porta do banheiro usando a unha para ver pela primeira vez uma menina com as calças arriadas. Minha iniciação sexual visual, que só com os anos viria a concatenar as imagens.

Acre. Na cloaca máxima do desespero humano em forma de mosquitos.

Lá onde aprendi a me aventurar no mato. Lá onde as abelhas entraram por baixo do meu capacete e se banquetearam picando meu couro cabeludo, para em seguida morrerem sufocadas em meus cabelos. Lá onde brincava de pular de um andaime de dez metros de altura para o telhado de uma construção. Lá onde a noite podia ser aterradora quando se está só e preso no meio do mato. Lá onde não fui devorado por uma cobra de cinco metros, que era muito bonita, mas apanhei mesmo assim. Lá onde me acostumei a beber suco com formigas boiando. Lá onde descobri que o custo de apegar-se às pessoas é ter que enfrentar a eventual separação. Deixei minha pistola de plástico favorita como presente e ganhei um brinquedo que girava e soltava faíscas.

Acre. No coração piegas de um escritor precocemente senil.

Lá onde aprendi a não chicotear colegas. Onde descobri que eu era sem talento para as habilidades manuais. Onde aprendi que gostava que as professoras mais novas me olhassem com devoção. De onde saí levando, acima de tudo, um brinquedo que girava e soltava brilhantes faíscas.

Acre. Acorrentado nas sombras de um passado sufocante e pra sempre aprisionador.


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