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Ingrata, como só a vida sabe ser

Cada paixão minha durou pouco, um ano no máximo, mas o desgaste provocado foi bem maior. Aos vinte e cinco, meus primeiros fios brancos no cabelo. Aos trinta, a maior parte das crianças me olhavam passando na rua e muitos me tomavam por sessenta, o dobro exato da minha idade. Um ano a mais para cada mulher, esse foi o preço pago por me apaixonar tão profundamente.

Mas o grande mistério mesmo foi o fato de as mulheres sempre surgirem em três. Em toda época da minha vida, sempre que surgia uma mulher apareciam mais duas juntas. Só agora, bebendo meu rum quarenta e cinco graus é que consigo entender o porquê disso. As mulheres sempre estiveram lá, todas elas. Não apareciam em três mas era eu que me apaixonava de três em três, e fazia isso inconscientemente porque era esse o número máximo de mulheres pelas quais conseguia me apaixonar sem ficar completamente louco. No final, sempre que me envolvia com uma e acabava geralmente descartando as outras duas... más lembranças. Me faziam lembrar daquela com quem eu me envolvera e que passava a fazer de tudo para esquecer.

Falei de rum não? Meu velho amigo Rutwanna Wers sempre me dizia: "adoro cerveja, mas nada como um destilado!". E isso me faz lembrar justamente da vez em que um amigo precisara viajar e ligara desesperado, querendo que eu tomasse conta da casa dele enquanto ele viajava.

Topei na hora. Topei, pois sabia que isso significava tomar conta não só da casa dele, como também de sua coleção de uísques, vodkas, seu cachorro e sua mulher. Ah sim, a mulher... Maria era ninfomaníaca, precisava de sexo várias vezes ao dia para se satisfazer, sem o que entrava em crises de choro, de ódio, ou simplesmente numa depressão tão profunda que era preciso que três homens a fudessem de uma só vez para que ela voltasse ao normal. Paulo, meu amigo, definhava a olhos vistos desde que se casara, tendo empalidecido e perdido pelo menos trinta quilos nos dois anos em que estavam juntos. Parara de beber, entrara numa dieta de hipercaloria e fazia exercício como um doido para poder dar conta da intensa atividade sexual da mulher. Pela primeira vez precisaria viajar sozinho, incumbindo-me da missão de cuidar dela pois achava preferível que um amigo o fizesse do que um estranho.

Tive medo de brochar. Minha primeira e imediata sensação após ter desligado o telefone foi essa: vou brochar, tenho certeza. Não que Maria não fosse boa, pelo contrário, era deliciosa, mas a simples responsabilidade de ter que fazer a coisa era um peso grande demais para os meus ombros. Lembrando da coleção de vodkas pensei: bem, ao menos vou ter diversão garantida.

Fui para a casa do Paulo no dia combinado, confiante no meu taco. Era jovem naquela época e costumava a ter crises ocasionais de satiromania, que me faziam precisar dar umazinha ao menos três vezes por dia, mas sabia que Maria ia precisar muito mais do que isso.

Tudo foi indo bem, de início. Tínhamos uma rotina simples: acordávamos às onze, dávamos duazinhas, depois ela ia preparar o almoço e eu começava a beber. Comecei na vodka, mas logo me alastrei para o rum e o uísque. Antes de almoçar dávamos mais umazinha, seguida de outra logo após. Essa costumava a me deixar acabado.

De tarde ela dava um folga. Eu ficava bebendo a minguante coleção enquanto ela se divertia sozinha escrevendo poemas eróticos. Ah sim, a dama tencionava virar escritora. Se escrevia bem não sei, mas que os poemas provocavam, provocavam. A noite tinha leitura de poemas, mais sexo, e finalmente, quando ela pegava no sono, tranqüila como um anjo, eu me levantava pra ler e curar um pouco a ressaca.

Quando, ao amanhecer eu voltava pra cama (já antevendo que precisava de descanso para poder cumprir com minhas obrigações no dia vindouro) ela soltava um gemido, me puxando, se esfregando e se enroscando no meu corpo, até que dormia novamente. Ela nunca soube que eu costumava dar minhas fugidas para ler durante a noite.

Maria era perfeita, e perfeitamente previsível eu estava me apaixonando por ela. Ou pela coleção de bebidas, não sei, mas o fato é que começava a desejar que Paulo nunca mais aparecesse de volta da viagem. Mas, como já disse, minhas paixões vêm sempre em três, e foi aí que conheci Bárbara.

Bárbara era uma colegial. Dezesseis anos, morena, cabelos lisos, pretos e compridos como eu sempre gostei. Sempre perfumada, sempre arrumada e, por desígnios do destino, passava todo dia à tarde pela frente do jardim, onde eu costumeiramente ficava bebendo e olhando o movimento. Comecei a observá-la, e em pouco tempo já estava puxando papo. Ela deu trela, afinal já estava curiosa para saber mais sobre aquele maluco que estava toda tarde bebendo no jardim. Me apaixonei. Apaixonei perdidamente por Bárbara, e o fato de amá-la tão perdidamente me dava, ao contrário do que se possa pensar, mais ainda certeza de estar amando Maria perdidamente. Amava as duas perdidamente, e estar mais e mais perto de Bárbara se tornou, dia a dia, uma cada vez maior obsessão.

Estava fazendo mil planos e bolando estratagemas que me fizessem conseguir dar umazinha com a Bárbara dentro de casa sem que Maria, no entanto, visse, ou sequer desconfiasse com o famoso sexto sentido tão peculiar às mulheres, quando mais uma, a terceira, apareceu na jogada. (Nota: o sexto sentido das mulheres é geralmente ativado por coisas simples, como marcas de batom e perfume de outro cheiro, que nós homens nunca notamos mas que podem ser facilmente ocultáveis com um pouco de técnica e preparo).

Luísa. Luísa tinha estudado comigo na universidade. Não era das mais cobiçadas do curso, mas vivíamos nos esfregando nos corredores estreitos do prédio de estudos, sem nunca chegarmos às vias de fato. O namorado dela fazia direito, e um belo dia ela casou e abandonou o curso, não tendo nós nos visto mais desde então. Essa veio por telefone. Soubera por uma amiga que eu estava morando na casa do Paulo por uns tempos. Não, Luísa não conhecia Paulo, assim como não sabia nada sobre a deliciosamente ninfomaníaca Maria. Muito menos sobre Bárbara, a colegial, que pela idade das duas poderia muito bem ser filha de Luísa. Mas conseguira o número do telefone e o fato é que tinha acabado de se separar do marido e precisava muito de alguém pra conversar. "Conversar" era o que ela queria, pra ser mais exato. Aprofundei a conversa no telefone, torcendo pra que Maria não aparecesse bem na hora e melasse com tudo. Eu amava Luísa. Sim, sempre a amara, e só agora conseguia perceber.

Constatei que fazia exatamente um mês que ela se separara, período em que, segundo ela, ela ficara meio triste, mas agora "queria tocar a vida pra frente". Isso incluía, é claro, sexo, e o que todos sabem é que um mês é o tempo máximo que uma mulher demora pra esquecer um homem. E uma vez que, conforme pude perceber pelo que ela falara, ela estava desde então sem sexo, tudo fazia crer que ela estava doidinha pra dar.

Marcamos um encontro para uma quinta-feira à tarde. Ela estranhou o horário, mas topou. Eu precisaria controlar o tempo para estar de volta quando começasse a escurecer.

Comecei a me masturbar. Abandonara o hábito desde o primeiro dia em que começara a cuidar de Maria, mas estava louco demais de tesão por Bárbara e Luísa para que pudesse me controlar. O resultado na cama foi imediato, e comecei a ter dificuldade de manter o mesmo nível de atividade sexual com Maria que vinha mantendo. Isso pareceu deixar a moça insatisfeita, mas antes que ela começasse a reclamar, comecei a intensificar as sessões pré-coito com Maria, masturbando-a e também exercendo o lingüete, minha especialidade.

Com isso consegui, aparentemente, fazer com que a moça não reclamasse da substituição cada vez maior do meu pau pela minha língua. Chupei-a por duas horas seguidas uma vez, e até hoje recordo isso, não só por ter assado toda minha língua, mas também porque não consegui lembrar de uma ocasião em que tenha ouvido uma mulher gritar e gozar tanto. Com isso consegui satisfazer minha necessidade masturbatória, assim como me resguardar para as outras duas.

Quinta-feira chegou. Eu e Maria demos umazinha depois do almoço, e notei que ela já começava a ficar entediada das longas sessões pré-coito e sentia saudades de uma boa surra de pau. Esperei que ela se trancasse com seus poemas, tomei um banho, troquei de roupa, bati umazinha pensando em Bárbara, e saí para encontrar Luísa.

Cheguei lá. Hora, data e local combinados, mas nada de Luísa. Ela estava atrasado, mas como isso é normal com mulheres, tratei de ir sentando e pedindo um uísque. O bar ficava no centro, perto da única praça da cidade (que um dia fora pública, mas agora cobrava ingressos para que se pudesse percorrer seus "imensos" vinte metros de largura por cinqüenta de comprimento).

Já estava no quarto copo quando senti aquela mão suave e feminina me pousar no ombro, seguido pelo oi entusiasmado. Virei e olhei-a: Luísa! Estava mais bela que nunca, um daqueles raros casos em que a natureza faz com que a idade favoreça a beleza de uma pessoa, invés de dilapidá-la. Apressou-se em beijar-me deliciosamente o rosto e senti seu aroma. Logo em seguida me apresentou Marcelo que, só então pude perceber, estivera o tempo todo parado ao lado dela sorrindo idiotamente. Marcelo? Que porra era essa de Marcelo?

Sentaram. Sentaram e conversamos por quase uma hora, ao fim da qual eu já havia descoberto que Marcelo era seu novo namorado e que, agora que ela estava tentando esquecer seu passado recente e reconstruir sua vida, ela esperava poder contar comigo e com minha sincera amizade para ajudá-la nesse "caminho difícil". Palavras...palavras... há milhares de palavras que passam pela cabeça da gente, mas tem hora que simplesmente não há nada que possamos dizer porque qualquer coisa que tentemos dizer será, com certeza, um enxurrada de ofensas. Quanta honra para mim, ter sido escolhido como o primeiro do novos amigos justamente por sermos tão amigos antes que ela se casasse...argh, me dava nojo. Fui ao banheiro e vomitei. Na volta paguei a conta, me desculpei com eles por já ter que ir e, com a promessa de nos revermos em breve, fui embora.

Voltei irritado, pensando em Bárbara e Maria. Maria, meu grande amor... nela sim eu poderia confiar. Quão negligente eu havia sido com ela nos últimos dias. Mas haveria de compensá-la. Chegaria em casa, a arrebataria do seu quarto de poemas e transaríamos como loucos a tarde inteira.

Cheguei em casa. Maria não estava no seu quarto de poemas, como habitual. Encontrei-a no quarto de casal, transando como louca com Paulo, que chegara de viagem para usurpar minha Maria. Minha Maria. Fiquei na porta, estarrecido, vendo enquanto Paulo fudia aquelas carnes deliciosas que, por usucapião, até três horas atrás ainda me pertenciam.

Me viram. Acenei-lhes, fechei a porta e fui para sala, aguardar enquanto Paulo, como um rei, tomava de novo posse daquilo que um dia pertencera a um impostor. Estava já escurecendo quando finalmente Maria se deu por saciada e Paulo veio até a sala me cumprimentar. Estava de roupão. Agradeceu-me o favor, deu-me de presente uma vodka e foi me acompanhando cordialmente até a porta, dando-me a entender que eu estava de saída. Maria veio atrás, saindo do quarto e grudando-se apaixonadamente no corpo de Paulo. Ele me olhava do alto do seu trono sorrindo, com seu castelo e sua rainha doida para fuder, enquanto eu, usurpador, covarde demais para tornar-me regicida, ia embora.

Tomei a vodka toda, quase sem respirar, terminando ainda a noite num bar para acordar em casa, mijado e vomitado, caído no chão, com a cabeça explodindo, o estômago queimando e a maior ressaca que já tive na vida.

Enchi a mão de remédios e fiquei aguardando a dor passar. Ou melhor, as dores. Troquei de roupa e percebi que mal se notava o cheiro do mijo ou do vômito. Pensei em fazer a barba, mas precisava sair... tinha que rever Bábara.

Na saída do colégio eu a vi. Estava linda, cercada por amiguinhas. Só então pude notar meu odor fortíssimo e meu péssimo hálito, mas tive a certeza de que ela não notaria. Abordei-a. "Oi", eu disse, "oi" respondeu ela, meio constrangida. "Vamo lá pra casa, meu amor, tô com saudades tuas!". "Meu amor?" perguntou ela. "É, sou Bárbara, sou eu, Anacreonte, eu te amo, por favor, eu te amo!!!".

Ela se esquivou de um abraço meu e disse "Pô, véio, saí dessa... Aí, nada a ver hein...", e se virando foi embora com as amigas, me chamando de louco enquanto que eu, de joelhos, berrava somente "mas eu te amo, eu te amo, nós vamos ir lá em casa, vamos beber e curtir a noite inteira, nos amar como loucos, eu te amo, eu juro, por favor".

O mundo parou simplesmente de fazer sentido. Foi nessa hora que senti que uma engrenagem deslizava e forçava passagem junta à outra que, emperrando, simplesmente torcia o eixo e quebrava todas as peças, estilhaçando e destruindo essa maquininha chamada mundo, chamada realidade. Me vi chorando no chão como se fosse um doente, só levantando quando vi a polícia chegar e tive que fugir pra não ser preso.

E hoje, segurando a garrafa de rum que já chega no último gole agora, ainda me pergunto porque aquelas três me deixaram, assim como muitas outras que vieram antes e depois, sempre aos trios. Não era justo. Não, não era, a vida nunca era justa. E mais uma vez senti a decadência se abater sobre mim e a vida tornar-se mais e mais ingrata. Ingrata, sim, como só a vida sabe ser.


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