Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Reminiscências doloridas de um estômago rasgado

É engraçado que apesar da freqüência uma determinada sensação não perca sua estranheza ou fascínio. Mesmo com quinze anos de estrada na trilha dos botecos, continuo acordando no dia seguinte com a sensação de culpa, com a certeza de que matei alguém. Mas como poderia um escritor pacato de histórias morais dedicadas a avozinhas viúvas entrar num tal rampante de raiva que o levasse a matar alguém?

Poucas coisas me lembro com certeza da noite de ontem. Posso jurar que fui esquartejado, eviscerado, e pendurado nos pontos de ônibus da praia. Ou talvez isso tenha sido há dez anos. Ontem à noite Orson Welles e H.G. Wells bebiam juntos disputando um campeonato de porrinha. Karl Marx ainda não tinha escrito o capital e era apenas um jovem universitário apagado numa mesa de tanto beber, isso depois de ele e Sócrates terem entoado todos os hinos de buteco da baixa renânia. Dois caras peludos corriam de um lado pro outro e tentavam copular, sem sucesso pois eram castrados. Um terceiro cara peludo corria com uma bola prum lado e pro outro e uma mulher chamada Lola corria atrás dele. Depois de um tempo reconheci-o, era Otto von Bismarck, que ainda nem tentara unificar os reinos teutônicos e me vendera um carro usado com defeito, toda vez que eu fazia uma curva o limpador do pára-brisas ligava.

Mas tergiverso. Essas memórias esparsas da noite de ontem não me revelarão se matei alguém ou não. Apesar de Herman Hesse ter me dado algumas pequenas alegrias, nada explica que eu pudesse ter confundido o grito atrás da cortina com o barulho de um rato. O fato é que eu odiava Polônio. Odiava-o tanto que nomeara minha úlcera com o nome dele, para que sempre que ela doesse eu me lembrasse dele e alimentasse ainda mais meu ódio.

Ainda não lembro quando foi que decidi vingar-me de Polônio. Acho que foi quando eu saía do banheiro e reparei na maneira desdenhosa como ele olhava para as folhagens do bar. Aquilo foi o estopim da ira, pois não é culpa do franke, dono da bodega, se a bananeira nunca deu nada. Pode haver muitas explicações, científicas e não tão científicas, para o fato, mas nada justificaria o olhar desdenhoso.

Quando me vi eu já arrancara uma das espadas de madeira do Musashi e acertara um golpe certeiro na nuca. Cão tinhoso do infernos, eu teria gritado neste momento segundo algumas testemunhas, enquanto outras afirmaram que em verdade eu entoara uma velha magia celta. O fato é que confundi Polônio com um rato, conforme já expliquei na polícia.

Os policiais levaram o corpo e a bebedeira continuou igual no boteco. Zinoviev entrou com um olhar de ódio procurando alguém, Sherlock Holmes comprava ópio junto de Tomas de Quincey, enquanto Watson desafiava Orson Welles na porrinha. De setenta e sete partidas, Watson ganhou trinta e nove e Welles trinta e oito, o que dava uma ligeira vantagem ao gordinho. Na saída Watson ainda disse:

--- Rosebud, meu caro Orson!

E foi-se embora assim como as lagartixas roxas fugindo do inferno. Ah se o Dante estivesse vendo isso!


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski