Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Circadiano

Na sufocante juventude, dezessete anos. Noites etílicas e bucetas líricas e doses exageradas de bebida e tristeza e angústia. Lembranças enjoadas de acordar às cinco da manhã, na mesa de um bar na beira de uma estrada qualquer. O cheiro da gasolina vindo do posto ao qual o bar pertence e uma respeitável senhora de trinta anos lhe fazendo carinho um carinho na nuca e perguntando, com hálito bêbado, tudo bem, amor?

Retomar lentamente o controle do seu corpo, limpando a sujeira deixada por aquele inquilino indesejável que você se torna depois da quinta garrafa. Sentir o beijo sufocante com línguas demais e dentes de menos. Sentir cada verruga, cada afta e pústula, naquela que foi sua companheira de farras por uma noite, outra pobre coitada encontrada na rua.

Perguntar-se por que não acordou em outra cidade, outro país, algo um pouco diferente dessa cena familiar? Chegar aos trapos em casa às oito da manhã, e ter que encarar a família, e dar-lhes bom dia, e recusar o café da manhã, e dar alguma explicação para chegar naquele horário tentando conter o enjôo e a iminência do vômito. Se afastar da mesa e ir dormir, enquanto seu teu e pai e tua mãe brigam na cozinha por ela ter tentado te defender das acusações dele.

Contemplar a tristeza da vida e sentir-se num vazio onipresente. O desejo pela morte, a certeza da incompreensão e a dificuldade de viver num mundo que não lhe agrada. As pessoas que lhe sussurram dia e noite que você vai crescer e mudar e tornar-se um idiota acéfalo como eles, que vai comprar um barbeador elétrico, um carro elétrico e uma esposa elétrica de tanto ingerir estimulantes e eles te farão felizes, felizes na mediocridade.

Dormir o dia inteiro, para fugir daquela realidade, daquele dia ao qual você não pertence, para o qual não foi feito nem ajustado, e acordar com o pôr-do-sol para mergulhar novamente numa noite de fantasias e fugas e mentiras e alívios embriagados. Encontrar a chance de felicidade nos lábios de uma estranha e na promessa angustiada de seu corpo, na compulsão explosiva de deixar nela um pouco do líquido viscoso que sai do teu corpo nos sonhos agitados de noites quentes. Acordar suando e gritando no meio da noite numa praia fria de areia molhada, constatando que finalmente, por alguns momentos, você driblou o mundo e conquistou um pouco de realidade. Sentir a dor nos órgãos internos e no braço machucado e saber que aquilo te faz dolorosamente vivo, pela primeira vez novamente. Desafiar as ondas, desafiar Poseiden, Dionísio e Hades, desafiá-los a roubarem sua vida segundas antes de pular no mar agitado noturno e descarregar nas ondas inflexíveis toda sua agressividade. Voltar pra areia sentindo a superioridade de quem sobrevive, minutos antes de implorar a Poseidon, Dionísio e Hades para levarem sua vida, implorar por paz.

Caminhar na escuridão da areia até encontrar um grupo de bêbados na margem que lhe perguntam onde estava. Sentir a vodka escorrendo pura pela garganta enquanto Poseidon, Dionísio e Hades se aproximam e seguram tua mão, tornando-o tão divino quanto eles enquanto você bebe e pula gritando ao redor de uma fogueira em construção, prestes a acender-se.

Sentir a alívio de sair da realidade para entrar no mundo dos vivos novamente pela primeira vez, antes de desfalecer e acordar, na sufocante juventude, amanhecendo em um bar qualquer, na beira de uma estrada qualquer, com uma menina qualquer de treze anos que chora na mesa pedindo pra você acordar pois os pais dela vão matá-la se descobrir que está chegando em casa depois de amanhecer. Caminhar alguns quilômetros até a casa dela, beijá-la, e voltar caminhando para casa e para o esquecimento torpe da realidade.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski