O terror de Horácio
--- O ranço da idade me persegue cada vez
mais ultimamente... já te falei que odeio o inverno??
--- Já, já disse.
Um silêncio pareceu congelar tudo. O
diálogo acabou assim.
Parecia que já havíamos dito tudo que era
possível dizer na face da
terra. Estava muito frio. Três e meia da
manhã. Nenhum casaco parecia
o suficiente para espantar o frio e o cansaço já nos fazia cochilar
enquanto falávamos. Somente o uísque esquentava um pouco. Não se foi o
uísque, ou o cansaço, ou o frio, ou o fato de todas as palavras terem
se esgotado e todas as histórias sido contadas, mas criei coragem.
Havia uma história que eu nunca revelara, uma história nunca contada.
Anacreonte dormitava já, quase com os pensamentos nos sonhos, quando
interrompi o silêncio.
--- Já te disse que odeio o inverno, não?
--- Já, já disse, Horácio... - replicou ele com paciência de
sonâmbulo.
--- Mas... já te disse por que odeio o inverno?
--- Ahn?
--- O inverno, eu nunca contei porque eu odeio, não?
--- Por causa do frio, oras.
--- Isso também, mas o frio pode-se aprender a conviver com
ele. Mas não o que eu vi durante meu primeiro inverno aqui. Nada
poderia me fazer aprender a conviver com isso.
Anacreonte abriu os olhos e pareceu se endireitar na poltrona
para ouvir a história. Eu relutava em contar um segredo que por tantos
anos guardara, mas agora eu já fora longe demais. É como quando você
deixa de comer uma garota por ela ser virgem e só depois percebe que
por causa disso ela nunca mais vai te dar a chance de comer ela de
novo. Não, pensando bem, isso não tem nada a ver com o caso.
Anacreonte terminara de se ajeitar na poltrona e resolvi contar logo a
história antes que ele voltasse a dormitar.
--- Eu tinha vinte anos. Tinha recém saído de casa e vindo pra
capital. Fui morar numa casinha pequena mas sincera, ali perto do
Itacorubi. Um banheiro, uma cozinha e um quarto. O banheiro era grande
demais e foi o único lugar onde coube uma mesa, o que dava um ar muito
estranho praquela casa. Bem, mas nada disso importa, o que vem
realmente ao caso é que a casa tinha sido construído em cima do
mangue, e justamente aquele mangue era uma espécie de local sagrado
para os índios que tinham vivido ali há alguns séculos.
--- Putzgrila, isso tá com cara de filme americano. Não vai me
dizer que você foi tragado pela tevê e foi parar no além.
--- Nãão, não não, nada disso. Não... Bem... quase isso...
Parei pra ajeitar a garganta. Aquela interpelação em tom de
deboche me deixara na incerteza de se eu devia ou não continuar a
história. Mas acabei relevando, era o tipo de frase tipicamente saída
da boca dele, não era por mal, era apenas um vício estranho como esse
de imitar revista em quadrinhos e falar putzgrila.
--- Eu tava dorminda lá. Era minha primeira noite. Três vezes
acordei ouvindo passos dentro de casa. Voltei a me cobrir, não havia
de ser nada. Puxava a cobertor até que este tapasse o rosto e ficava
assim até dormir, sentindo que lado da cama, parado em pé, alguém me
observava, esperava algum movimento meu. O melhor era dormir.
--- Cagão!
--- Não, é sério, espera eu te contar o resto. No segundo dia,
antes de dormir, verifiquei todas as trancas, portas e janelas. Tudo
fechado. Fui dormir. No meio da noite novamente acordei com o barulho
de passos. Puxei o cobertor até em cima e fiquei lá parado. Eu podia
sentir a coisa ao meu lado, podia quase ouvir sua respiração, e se não
ouvia era porque de fato há muito tempo já não mais respirava.
Anacreonte dessa vez nada falou. Percebera que eu falava sério
e resolveu ficar calado. Tomei coragem e continuei a falar.
--- No terceiro dia eu já não mais agüentava. Verifiquei tudo,
botei até cadeado por dentro na porta e fui dormir. No meio da noite,
os passos. Levantei e encarei-o diretamente. A figura era surreal, um
índio, com um enorme cocar na cabeça e uma armadura no resto do corpo.
"Meu filho", ele me disse, "meu filho, preste atenção na visão que vou
te mostrar, tu deves vingar minha morte".
Ao dizer isso a imagem fez um gesto e uma espiral se abriu me
tragando. Fui parar numa espécie de terra selvagem sem vegetação, tudo
que havia era apenas o barro vermelho no chão e o céu cinza, algo tão
terrível quanto Brasília. Satiros e ninfas corriam por todo o lado,
protagonizando orgias, centauros passavam de um lado para o outro
degolando búfalos e formigas gigantes realizavam estranhos rituais de
acasalamento, no centro de tudo havia um trono onde um grande lesma se
agitava, como imperador daquele mundo. Da lesma escorria um fluido
viscoso que se espalhava em toda a área ao redor e por onde passava
fazia brotar ornitorrincos vindos da profundeza. Dois enormes
chafarizes jorravam seus líquidos até a dezenas de metros de altura,
um com sangue, outro com urina. Uma fada, uma espécie de espírito das
árvores veio até mim. Tinha a forma de uma mulher vestida de casca de
eucalipto. Parou na minha frente, me olhou com olhos que pareciam
revelar todos os segredos da humanidade, despiu-se, revelando o mais
delicioso corpo feminino já visto, com uma pela esverdeada como é
própria de sua espécie de fadas e me disse "eu sou a perfeição, vem!".
Dizendo isso deitou-se ao chão e abriu as pernas e... nesse momento, a
visão terminou e me vi de volta em meu quarto, em frente ao índio de
armadura.
"Viste meu filho, o ardil com que me mataram?" perguntou o
índio. "Que ardil? Tudo que eu vi foi um monte de orgia e morte e uma
ninfa se abrindo pra mim". "Merda", disse o índio "visão errada de
novo, odeio quando isso acontece". "E tem mais", disse eu, "eu não sou
teu filho porra nenhuma, meu pai nem sequer morreu, vai procurar
outro, xô assombração". "Horácio, estou morto!" insistiu ele. "Xô,
xô!". O índio, vendo que realmente não conseguiria me convencer
naquela noite disse. "Horácio, meu filho, amanhã eu volto. Amanhã
verás como me mataram, te garanto que não vou errar de visão. Depois
disso poderás vingar minha morte".
--- Nossa, isso é sério --- perguntou Anacreonte assutado.
--- Éééé --- disse eu --- E no outro dia, de manhã bem cedo,
fui na imobiliária e entreguei a chave do apartamento, consegui reaver
metade do aluguel adiantado do primeiro mês. Se o índio voltou na
noite seguinte ou outra qualquer eu não sei. Eu não voltei.
--- Nossa...
--- Éééé...
Um momento de silêncio se abateu de novo, Anacreonte procurava
refletir sobre a história e eu aproveitei o momento para acompanhar
calado sua reflexão. Era uma história absurda demais, o simples fato
de eu poder revelar iss para alguém depois de tantos anos me era um
alívio.
Passou-se uma hora assim. Eu já quase dormia de novo quando
Anacreonte pareceu enfim terminar de digerir a história toda. Olhou
pra mim com olhos curiosos e perguntou:
--- E a tal ninfa? Era gostosa mesmo?
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