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No divã do mundo

Desviou os olhos do movimento intenso da cidade, que observava através do vidro. Baixou a cabeça, suspirou pensativo, pesando bem as palavras que iria dizer e como dizer sem que isso se tornasse ofensivo ou agressivo. Por fim virou para o paciente, que aguardava ansioso uma resposta sua, quase se levantando já da cadeira onde se sentava, e perguntou:

--- Quer dizer então, depois de tudo que você acabou de me explicar, e depois de todos os fatos que se seguiram levando a esse desfecho, que você e sua mulher não conseguem mais gozar se não tiverem uma briga antes de fazerem sexo?

--- É ... poderia se dizer que sim... é isso aí - disse Ivan, o paciente, enrubescendo.

--- Um-rum --- disse o médico, tornando novamente a calar-se, aumentando ainda mais o peso da tensão que pairava no ar. Complicado, uma bosta mesmo, ele pensou. Dezessete anos de sua vida estudando. Depois mais um ano inteiro estudando como um cão pra conseguir uma mísera vaga num curso de medicina, seguidos de dez anos na universidade até se formar. Seis anos de curso, mais um pra especialização em psiquiatria, mais três de residência. Se formou com vinte seis, vinte sete, anos, tudo isso regado a muita cerveja, putaria e estudo. Conheceu a sua esposa lá. Entrou na vida acadêmica solteiro e pobre e saíra casado e com a esperança de em breve comprar sua mansão com carrão. Depois passou mais de dez anos clinicando e viu todas as fases de sua vida se esvaírem como aconteceu com todo mundo que conhecia. Depois, agora, com quarenta anos, após tudo isso, tudo, vem esse cara e joga tudo em cheque.

Ele olhou uma vez mais para o paciente, que devolveu da cadeira um sorriso tímido angustiado. Já ia mergulhando novamente em seus pensamentos quando Ivan se precipitou novamente a falar.

--- Não leva a mal doutor, por favor, não me interpreta de forma errônea. Eu amo minha mulher, amo mais que tudo nesse mundo e tenho certeza que ela também me ama. Mas o problema é que... é que...

Nesse ponto Ivan baixou a cabeça e começou a chorar convulsivamente. O psiquiatra olhou novamente os prédios cinzas da cidade, derramando-se como um tapete sem fim. Lá embaixo as pessoas transitavam freneticamente de um lado para o outro como se alguma delas realmente soubesse para onde está indo. Odiava quando isso acontecia. Alguns psiquiatras conseguiam lidar friamente com essa situação e simplesmente interrompiam a sessão, davam um lenço de papel pro paciente e diziam "está bem, está bem, tudo bem, chora a vontade. quando você terminar a gente volta ao sério e continua com a sessão". Já outros, ao contrário, se desesperavam toda vez que isso acontecia. Novatos principalmente, entravam e verdadeiro pânico na primeira vez em que um paciente começava a chorar e acabavam chorando junto. Há uma fronteira real e psíquica numa terapia, a fronteira entre o discurso e o mundo real. Tanto paciente quanto o médico podiam falar qualquer coisa que quisessem, desde que no mundo real se mantivessem distantes e frios. Um choro, porém, quebrava essa regra. Um choro fazia com que o mundo do real e do discurso se fundissem, fazia com que o medo psíquico se tornasse em medo físico, medo da morte, fazia, principalmente com que o psiquiatra saísse do alto de seu altar inalcançável e percebesse, assim, que suas palavras eram na verdade muito mais que palavras proferidas, eram palavras, que viravam discurso e transformavam assim a realidade física, com conseqüências tanto boas quanto más. Quaisquer conseqüências, quaisquer, mesmo assim, porém, todas elas de responsabilidade do psiquiatra.

Havia um terceiro tipo ainda, um tipo mais frio de psiquiatra que ao invés de temer o choro do paciente, em verdade o buscava. Desrespeitava a lei do afastamento da realidade e o fazia de propósito, para que o paciente pudesse sentir mais intensamente o momento presente e, assim, tornar o processo de mudança objetivado pela terapia mais intenso e eficiente. Seguiam, em geral, a seguinte estratégia: primeiro esperavam o paciente falar, falar, falar, falar, até contar tudo, tudo, todos seus problemas, seus pensamentos, sua vida. Depois começavam a destruir, um por um todos os pontos, de forma sempre cruel e agressiva, de forma a tornar o processo todo o máximo dolorido ao paciente até que esse, por fim, desabasse chorando. Aí, por fim, depois disso, o médico esperava pacientemente o paciente terminar o choro e dizia "pronto, acabou? Podemos começar agora? E aí sim começavam a sessão realmente. E esses, por incrível que pareça, eram geralmente adorados pelos seus pacientes após o fim da terapia.

Mas nosso psiquiatra em questão não era um desses, de forma que se afastou, mais uma vez pesaroso, da janela e foi até o paciente com uma caixa de lenços de papel, ajudá-lo a se acalmar e parar de chorar.

--- Calma Ivan, calma, vamos pensar nisso, ok? Vamos conversar sobre isso e vamos ver no que eu posso te ajudar. Talvez nem sequer seja preciso algum remédio --- falou ele essa última frase com um tom de animação e empolgação, como se isso fosse alguma vantagem. Mas era verdade, talvez o melhor fosse simplesmente encaminhá-lo a um psicólogo e simplesmente com isso se livrar de uma dor de cabeça. Um psicólogo era muito mais recomendado pro caso dele, isso sem dúvida, e, provavelmente, um psicólogo estaria bem mais aparelhado para ajudá-lo.

Mas ele não fez isso. Talvez estivesse ficando velho, talvez fosse isso, mas aquele caso tão humano ali na frente dele, tão humano, fez com que ele resolvesse ceder ao seu orgulho e não reencaminhar um paciente que fora até ele pedir ajuda, muito menos reencaminhar a psicólogo. Ele ajudaria aquele rapaz que, fosse uns dez ano mais novo, poderia ser seu filho. Filho? Ele estava se afeiçoando ao paciente, e isso não era bom.

--- Ivan, por que, em sua opinião, você acha que você e sua esposa só conseguem gozar se tiverem tido uma briga antes.

--- Eu não sei Doutor, eu não sei. É como te disse, a gente se agride verbalmente e quase que partimos pro soco mesmo de vez em quando. É uma espécie de ódio, não sei, um ódio que brota, um a fúria e, por um momento, tudo que queremos é descarregar aquele ódio, destruir um ao outro até que não sobre mais nada, até que não reste nada mais vivo respirando entre nós. Morte ao amor, morte a vida, morte aos costumes, morte a nós mesmos. Mas é aí, justamente nesse espaço entre a loucura e a morte, nesse campo do nada e da destruição, que vemos o quanto amamos um ao outro, e o quão desesperadamente precisamos um do outro para trepar. Um com o outro, loucamente, até que nada mais reste, nada mais, nenhum sentido, somente prazer, dor, gôzo, sensação. O fim de todos os símbolos para a compreensão de todos os significados. O Significado Absoluto!

--- Um-rum, certo, mas por que vocês fazem isso?

--- Não sei doutor, não sei. Acho que tudo começa nas pequenas coisas, nas pequenas mesquinharias, vícios, idéias, falas erradas, nas pequenas coisas que tão constantemente fazemos uns com os outros e que estraga tudo, destrói a vida, nos enche de ódio, sem que tenhamos ao menos noção do como e porque. E depois, depois, depois de tudo, no meio da briga, é como se, como se, como se, sei lá, estivéssemos livres de tudo, estivéssemos puros, purificados, purificados juntos tanto mentalmente quanto carnalmente, uma carne que aflora e exige cobrar seu preço, a junção carnal absoluta. É como se matássemos a nós mesmos, expiando assim todas as culpas, impurezas e defeitos que houvesse em nós, possibilitando assim o encontro real do prazer, do significado. Eu estou ficando louco, doutor, por favor, me ajuda, estou ficando louco, desesperado, não consigo mais trabalhar, não consigo fazer nada, socorro...

--- Calma, calma, shhhh... Você não está ficando louco, calma. Só precisa ajuda e eu estou aqui, tudo bem. Isso, calma. Veja, veja o que você acabou de me dizer agora, é lindo isso. É, é sério, não faça essa cara de descrença. Você não está louco só está sendo perfeitamente humano. Quer ver?

--- Hum? --- fez ele, se acalmando novamente e enxugando as lágrimas que haviam recomeçado a rolar.

--- Veja, você mesmo disse que isso surgia dos pequenos ódios, das pequenas coisas do dia a dia que iam irritando vocês não?

--- Foi...

--- E também disse que quando brigavam era como se se destruíssem, como se destruíssem essas pequenas barreiras e pudessem assim, se reencontrarem e amarem de forma real, não?

--- É... foi mais ou menos isso, é por aí.

--- Então, não tem loucura nenhuma, está vendo, todos nós temos nossos pequenos problemas, e vocês estão somente tentado se ajeitarem.

--- É... pode ser, mas isso não é normal, doutor, não é normal, entende, é doentio, me deixa realmente louco, eu não entendo, não entendo.

--- Eu sei, eu sei, e pra isso vamos tentar então entender e ver o que fazer a partir daí, certo?

--- Certo.

--- O problema de vocês é falta de contato, só isso. E por causa disso vocês entram nesse processo metafórico e transferem todas as neuroses para coisas à toa, que não deveriam ser, de fato, relevante, e aí, só depois de brigar sobre essas pequenas metáforas é que vocês podem considerar saciado o desejo de solucionar os problemas que tanto incomodam e atrapalham, e que tanto te impediam de ter uma eração decente como você falou antes. Vocês estão fazendo de forma errado, mas tão no caminho certo. Veja meu filho, o objetivo da vida não é outro senão o alcançar da felicidade. Felicidade essa que nunca pode ser segurada ou alcançada integralmente. Felicidade essa que encontra seu canal maior naquele que é o objetivo da vida humana: fuder. Assim sendo, meu filho, de agora em diante você vai fuder sua esposa todo dia, e falar sempre pra ela tudo aquilo que possa causar qualquer interferência na vida de vocês. Seja humano, sejam humanos, bela e deliciosamente humanos, buscando junto a felicidade, a compreensão e, principalmente, sexo. Vai, lá, fode tua mulherzinha, diga que a ama, pegue umas férias e tudo se resolve.

A consulta acabou aí. Um brilho parecia fulgurar nos olhos de Ivan agora, que era compartilhado pelo médico. Agradeceu, pagou a consulta e foi embora, deixando em ambos a certeza de que nunca mais iriam se ver, não seria preciso.

O médico olhou seu consultório, a sala vazia apesar das paredes decoradas com luxo. Olhou pela janela mais uma vez a cidade desolada lá embaixo. Foi até a ante-sala onde uma secretária bonita e gostosa recepcionava pacientes e agendava a vida do médico. O vestido era curto demais, como exigia a profissão, e pela primeira vez o médico reparou nas belas pernas que ela tinha. Pediu para ela cancelar tudo mais que ele tinha de compromisso no dia e foi para casa.

Chegou em casa e quase anoitecia. Mansão, carrão e esposa, como sempre soubera que iria ser, como sempre fora preparado para ter e ser. Aquele dia ele parecia enfurecido e brigou, discutiu e ofendeu a esposa, até que ambos chorassem desolados a profunda tristeza que sentiam e que tivessem chegado no nível mais baixo de suas vidas. O belo mundo construído com anos de trabalho simplesmente sumira agora, restando dois fiapos de vida que choravam e tentavam se matar. Aquela noite eles transaram, e gozaram como nunca, nunca em suas vidas, acharam que poderiam um dia gozar. Transaram. E nunca antes havia sido assim tão bom.


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