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A gênese de uma patologia

"Abandonem as esperanças aqueles que aqui entrarem!" Era isso que pensava enquanto andava pela rua... magro, jovem, bêbado, com a barba por fazer e um toco de cigarro entre os dedos, Rutwana Wers vagava por aí, livre e sossegadamente.

Mas não! Que porra... Quem estou enganando? Eu confesso... eu estava vagando na rua, Wers é apenas um personagem, e o pior, um personagem morto! Vou começar de novo... desta vez procurando ater-me aos fatos. É sabido já, a melhor forma de se esconder a verdade é atendo-se aos fatos, vamos lá então:

"..."! Isso era tudo que eu conseguia pensar num dia como aquele. Não era magra, nem, jovem, nem tinha barba e, quisera deus, que tivesse eu toco algum de cigarro entre os dedos ou o menor sinal de embriagues... Meu nome também não é Rutwana Wers, e pra falar a verdade, ele é apenas um personagem masculino meu, machista, calhorda, canalha, imundo. Meu nome é Patrícia, e o que vou falar agora é a história da minha vida, ou é o que seria se eu tivesse resolvido contar quem eu sou, e não quem eu penso ser.

Não sei porque estava assim aquele dia... algo a ver com meus peitos, eu acho. Não que não goste deles, adoro, são perfeitos, nem muito pequenos nem grandes demais. Peito grande, no fim das contas, é um saco, só serve pra deixar avó feliz.

Mas o fato é que lá estava, aquela sensação de agonia e descontentamento. Era assim desde que ele morrera. O trabalho me esmagava, Paulo já não me dava mais tanta atenção, beber não tinha mais graça, fumar era amargo, e eu precisava urgentemente arranjar um personagem para morrer no fim do meu conto, ou então teria que matar o personagem principal de novo. Nenhuma das duas coisas eu queria mais fazer, mas todos andavam me cobrando umas mortes. Mas sei lá, isso tornava tudo tão fácil que nem me animava. Podia escrever qualquer merda e se o cara morresse todos gostavam. Não que fosse culpa deles, a coisa toda é simples: A literatura encontra como meio de prazer no leitor o mecanismo da catarse. Assim, você começa o texto num tom animado ou melancólico, e vai tornando cada vez mais denso, ou dramático, ou insano, ou insuportável, ou tedioso até que, no grand finalle, o personagem, por não agüentar mais toda aquela loucura e maldade que o autor inventou é premiado com o alívio do suícidio, ou da morte trágica, que põem fim à todas suas angústias.

Mas não era justo! É fácil demais. E a vida não é assim... Na vida a gente vai se fudendo, se fudendo, se fudendo cada vez mais e, quando descobre que já tá toda fudida, escondida, encolhida num canto procurando evitar o mundo, a gente descobre que a morte não chega simplesmente sozinha, e que quando a gente quer tem que realmente ir atrás. Aí você descobre que não consegue mais andar, que já tá há três dias ali caída, sem comer, sem beber nada que não seja cerveja choca, toda cagada, mijada e vomitada, sem força pra sequer levantar. Você lembra que nunca quis comprar um revólver e amaldiçoa cada maldito centímetro da sua alma por causa disso. Depois você lembra das grades que mandou botar em todas as janelas no mês anterior quando, em meio a um acesso de auto-preservação, você temeu que fosse chegar no buraco em que você finalmente está. Mas o buraco é sempre mais fundo que o previsto não?

Aí num maldito lampejo de esperança você se arrasta chorando, com dor, até o telefone e liga pro idiota do seu namorado dizendo que acabou tudo e pedindo pra ele vim te matar que você já não consegue mais. Ele faz isso? É claro que não! A última coisa que você vê é o maldito boçal arrombando a porta e te levando pro hospital, até você desmaiar e passar uma semana sedada, num mundo fantasma, brinquedinho nas mãos dos médicos, pra depois ser jogada na mão dos psiquiatras que passam noites e mais noites se masturbando com as perguntas sobre teu pai, tua mãe e teu namorado, até que eles quase ejaculam precocemente ao descobrirem que, por acaso do destino, teu irmão e teu namorado são a mesma pessoa.

Depois de tudo isso eles te jogam de novo no mundo normal e ficam o tempo inteiro te vigiando, te cobrando, te lembrando que você não pode pegar e simplesmente se matar porque você é o amorzinho deles, a grande amiga deles, a brilhante aluna deles, excelente profissional deles, notável poetisa deles, e assim vai, inesgotavelmente, até que você está tão coagida e assustada que não tem nem coragem mais de se matar.

Aí você começa a sair de madrugada, de mini-saia, nas boca de fumo, nos xiló mais barra pesada da cidade, esperando um assalto, um estupro, um homicídio, qualquer coisa, mas não, nada! Nem sequer um tapinha na bunda ou um grito de ô gostosa! Aí você volta pra casa e encontra teu namorado, que agora mora contigo por questão de segurança tua, tranqüilo, pintando um quadro, na maior calma e frescor, até que depois de meia hora ele olha, vagamente, pra ti e, como que saindo dum sono profundo, pergunta: "Já voltou, bem?"

Droga! O que isso tem a ver? Era pra ser uma história ou a história da minha vida, e não uma defesa de tese. Mas o fato é que enquanto tudo isso fode com a tua vida, teu personagem sai tranqüilo e safo no fim da história com uma morte heróica. Bosta!

Mas nada disso resolvia o problema. Meus seios, tinha algo neles que me incomodava, talvez o sutiã. E eu tinha um livro pela metade que se eu não terminasse o editor arrancava meu útero. E eu tinha um conto, quase pronto, inacabado, na verdade, só no título ainda, que precisava desesperadamente de um personagem pra morrer no fim, ou então eu iria nunca conseguir escrevê-lo. A parte já pronta, o título, era "a Partenogênese de uma genealogia", onde eu misturava um monte de coisa, pra no fim não falar nada.

Bem... isso aqui era pra ser uma história, então vou falar de mim um pouco. Nasci em 79, em Porto Novo - litoral de SC, sou loira, olho claro, nome completo Patrícia Cristine Legajo, e vivi normalmente até os treze anos. Aí meu irmão matou uma namorada e sumiu. Na verdade não foi bem isso, mas o fato é que a menina morreu. Aí tudo fudeu e virou de cabeça pra baixo e o fato é que eu não quero mais falar sobre isso. Seis anos depois eu tô aqui, tô escrevendo, reencontreei meu irmão há dois anos de uma forma um tanto quando inusitada, que não cabe aqui revelar, e desde o ano passado tamos namorando, pois descobrimos que isso era inevitável. Um dia vamos ter um filho, mas por enquanto eu sigo tomando as pílulas.

Puta, que saco! Ficou um lixo! Se até você ler eu ainda não tiver tido o bom-senso de apagar o parágrafo acima, por favor não o leia, ou se o ler esqueça-o... se quiser saber sobre mim espera eu morrer e compra a biografia. O fato é que eu falei, falei, e até agora a única coisa que consegui, além de me perder no texto, foi não falar coisa com coisa. Meus seios ainda incomodavam, meu livro continuava no meio e o conto ainda por fazer, esperando o personagem que iria morrer. E eu continuava sendo apenas uma bêbada idiota, andando na rua, de óculos escuro, fingindo seriamente ter algum lugar pra ir, e fazendo pose de quem tivesse alguma noção de que porra afinal era isso que ocorria no mundo.

Além do mais, ainda nem sequer toquei no assunto do título. Se da patologia eu entendia alguma bosta, da sua gênese eu não só não entendia como nunca chegara perto de entender. Talvez minha mãe tivesse me jogado na parede quando criança, ou o mundo fosse uma grande carcaça podre e eu era o verme que se recusava a comer, que esnobava o banquete. Quem sabe o universo fosse uma grande poça de vômito e eu fosse apenas um mero pedaço de macarrão, um fiozinho à toa boiando. Quem sabe a porra toda tava de cabeça pra baixo, e eu não tinha notado ainda que eu insistia em andar com as mãos, ou quem sabe, ainda, a única coisa que tivesse realmente algum sentido era juntar um estoque de armas de destruição em massa e cumprir, assim, a vontade de deus!

Não também não era isso! Era tudo mentira! Eu sabia da patologia e sabia exatamente da gênese também, mas a verdade é que eu não queria enxergar, eu recusava, e eu recusava enxergar de onde surgia tudo aquilo porque doía ainda e a dor brotava novamente na garganta e nos olhos, me fazendo chorar toda vez que lembrava. Rutwana Wers morrera. E não! Ao contrário do que eu disse antes Rutwana não era apenas um mero personagem. Wers era real, de carne e osso, e falava coisas que só ele sabia dizer a mim. E puxava coisas que nem eu sabia, mas que lá bem no fundo, bem no fundo, estavam todas enterradas em algum lugar meu. E eu sentia ele como jamais sentira ser vivente algum porque, na verdade, éramos ambos a mesma coisa, partilhávamos de um mesmo segredo, um mesmo sentimento: estávamos ambos morrendo. Lenta e vagarosamente, em tempos diferentes, com cores diferentes, mas, quando o sol nascia, e só havia restado eu, ele, os garrafões de vinho e o Paulo que dormia no meu colo, todos nós sabíamos, até os garrafões, que a merda podia sempre ser pior.

E é por isso... sim, é por isso que agora estou aqui, zanzando perdida, estranhando meus seios, sem fechar o livro e sem conseguir escrever aquele simples conto por falta de um personagem que morra no final.

As pessoas passam na rua e ficam me olhando, curiosamente, a comentar a moça de preto que não pára de meter as mãos dentro do sutiã e agitar convulsivamente os peitos. Esmagada num canto, presa no sutiã, sinto uma coisa se mexendo e puxo enfim para fora. Pra fora dos peitos e da camisa.

Abro a mão e vejo, tremendo, a mais bela borboleta que já vi em minha vida. Mutli-colorida, brilhante, com tons que chegam, neste sol de quase fim de tarde, a quase alcançarem o dourado, para então afundarem-se e perverterem-se, torcerem a realidade, numa profusão incrível de cores em harmonia com os movimentos suaves e dóceis da borboleta, toda ferida, na minha palma da mão.

Lentamente ela abre as asas e, com esforço, as estica plenamente, demonstrado a luta pela vida. Ameaça alçar voô, porém antes detêm-se. Pára e olha pra mim, profundamente, docemente, na mais expressiva amostra da felicidade dizendo: "Obrigado! Obrigado! Livre enfim! Livre enfim!".

Vira então, majestosamente, preparando-se para aquele que será o vôo mais belo que mortal algum já viu. É é nesse exato momento, nessa exata fração de segundo, entre o virar da borboleta e o gentil abano das asas, que eu desço, com precisão e violência, meu punho fechado sobre a mão onde ela descansa, emagando-a, matando-a, esfregando as mãos com força até sentir nelas a umidade do corpo, que agora se esfacela, se decompõe, triturado entre minhas mãos e irreconhecível, destruído, por fim, completamente.

Livre enfim! Livre enfim!


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