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Um favor ao mundo

Varizes no rosto e espinhas na perna, isso era o que mais me marcava. Não, não estou trocando não. A perna era cheio de pontinhos e cicatrizes vermelhas, que se misturavam às novas espinhas amareladas de pus que ali nasciam, e o rosto, o rosto parecia um grande mapa composto por linhas azuis.

Ainda assim, gostava dela.

Um dia, estávamos pela praça, e isso era antes da prefeitura expulsar os hipsters e mandar a polícia pra matar os desabrigados, quando ela parou, como que encantada, olhando um enorme porta-incenso de madeira, uma forma esculpida que, segundo o rapaz que vendia, era um deus indiano.

Fosse ou não um deus, o que sei é que estava apaixonado, como todos os tolos. De forma que comprei pra ela aquele porta-incenso. Mas isso não bastava, é claro, precisei comprar também mais uma dúzia daquele aroma e mais outra daquele outro. E depois disso tinha o livrinho também, da ordem rama-mana na qual ele acreditava.

É estranho estar apaixonado. Olhava à noite aquelas linhazinhas azuis que cruzavam o rosto dela e ficava fazendo mil divagações, ora eram as ruas iluminadas de uma cidade, ora o mapa dos esgotos, ora uma teia de aranha et cetera ad infinitum. Não me incomodavam seus caprichos. Não me incomodava seu gosto pela página policial, única parte dos jornais que ela lia. E se tudo por ela fazia, não era por querer estar a seduzi-la ou comprá-la, mas tão somente para vê-la feliz.

Uma noite, vinha voltando eu de mais uma noitada bebendo às margens da lagoa e a encontro no chão, caída ao lado da cama, engasgando, sufocando, quase morrendo. As veias azuis inchadas e latejantes, o rosto contorcido numa expressão infindável de dor.

Ao lado dela, de pé, um alienígena. Desses comuns, banais, vulgarizados pelo excesso de filmes e exploração televisiva do tema.

--- Tu mortal! Tu amas tua mulher?

--- Sim, sim. Por favor, eu a amo.

--- Queres que ela morra?

--- Não, não a deixe morrer, por favor.

--- Cumprirá nossas ordens para salvar a vida daquela que tu amas?

Pensei meditativo. Estava tudo errado. Não fazia sentido. Por que um alienígena viria de outro mundo só pra sacanear a vida de um trabalhador mortal como eu? Por que?? E por que aquela maldade toda justo com a pessoa no mundo que eu mais amava? Não podia ser. Tudo errado, a começar pelo português antiquado e deselegante da criatura.

--- Responda mortal, nada de planos, nada de pensamentos, decida-te. Hás de querer ou não salvá-la a vida?

Putz. Era ruim mesmo, além de brega, a linguagem da criatura. Mas como eu disse, amava minha mulher. Não tinha escolha.

--- Sim, ó ser abominável, fa-lo-ei.

--- Ótimo. ótimo. Prepara-te então, mortal. Toma esta arma e vai, mata o presidente de teu país, e só então aqui retornas.

Peguei a arma, não acreditando. Minha mulher no chão continuava sufocando, mas o alienígena, seja lá de que planeta fosse, garantiu que a manteria viva até que eu voltasse. Ela espumava no tapete, tadinha, aquilo devia doer muito.

O plano era o seguinte. Eles eram capazes de abrir um portal que me levaria direto ao cara, para então eu atirar. A arma tinha um sistema de mira elaborado por eles, sendo impossível que eu errasse e, ainda por cima, disparava balas normais, seis de cada vez, que impediriam que a perícia suspeitasse que houvera interferência alienígena. Atravessei o portal assobiando e vi ao longe o canalha que eu era agora obrigado a matar.

Heróis gregos, que houve consigo?? Onde estava o drama? O dilema moral? A luta entre a consciência do protagonista e a tarefa lhe imposta pelo destino ou oráculos? Aonde diabos tinham ido a Epifania e a Peripécia? Levantei a arma e a mira eletrônica começou a funcionar. Não podia ser tão fácil, tão simples, tão sem dilemas morais ou dramas. Eu estava prestes a matar a pessoa que eu mais odiava desde que o mundo era mundo, e simplesmente não entendia por qual benção essa maldição divina me fora concedida. Pensei ainda nas crianças famintas, nos miseráveis, nas mansões milionárias, no policial de uniforme que enrabava o governador do estado enquanto a mulher dele trabalhava na prefeitura e, em nenhum momento, consegui formular qualquer idéia que questionasse a ação ou mesmo me levasse a qualquer tipo de dilema ou arrependimento. Era tudo limpo, simples, rápido e fácil.

Apertei o gatilho e vi as balas atravessarem e aniquilarem o filho da puta. Me aproximei, só pra ter certeza de que ele morria mesmo, e pra que os que estavam próximo vissem que era um humano, e não ser de outro mundo, que o havia matado. Feito isso, voltei pro portal e desapareci, deixando a segurança como louca a me procurar.

Apareci novamente no quarto, onde as criaturas, felizes, aguardavam minha chegada, já cientes de meu êxito.

--- Ó mortal, fostes agraciado com nosso perdão e cumpristes fielmente a missão. Te daremos agora aquilo que prometemos, restituiremos à tua mulher a saúde, deixando-a viver.

--- Não.

--- O quê? Que dizes mortal?

--- Deixa morrer.

--- Assim seja feito.

E sem mais palavras atravessaram outro portal que os levava diretamente ao disco voador com qual haviam vindo e se foram. Sentei na cama, assistindo ela se contorcer de dor e chorar enquanto morria. A veias da cara inchavam e estouravam, espalhando sangue no tapete, os olhos ficaram raivosos, cheios de veias de sangue que acabaram, por fim, também estourando. Atravessei o quarto, peguei o telefone e liguei pro hospital. Disse que minha mulher morria sufocando e pedi uma ambulância ou qualquer coisa, mas que viessem urgentemente. Ao chegarem, três horas depois, já havia morrido.

O enterro foi triste. Chorei até. E se não morri de tristeza na ocasião é porque, até hoje, ainda espero, aguardo, o dia em que aqueles formidáveis seres voltarão para me rever, e com uma nova missão.


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