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Um dia duro

Sangue, suor e fezes. Sangue, suor e fezes.

Era só isso que o sujeito falava. Um balbucio contínuo e que variava de intensidade do mero murmúrio ao grito desesperado. Ele estava envolvido em alguma espécie de culto ou seita mística. A Sagrada Ordem da Cloaca, era o nome, e desconfiávamos que estavam por trás de uma série de assassinatos que vinham ocorrendo.

Sangue suor e fezes, sangue suor e fezes.

O delegado Mourão me encarregara pessoalmente de inquirir o sujeito. O policial que o guardava já estava quase ficando louco com aquele estranho mantra. Sangue suor e fezes. Segredou-me que estava ele mesmo quase enfiando o revólver no sujeito para extrair-lhe as fezes pelo cano para ver se isso o calava.

Além do barulho insuportável, havia o cheiro. Sangue suor e fezes. E o sujeito estava todo recoberto disso. Sangue suor e fezes.

O suspeito estava sentado no chão num canto, já devidamente amaciado pelos colegas, o que significava a surra inicial que é de praxe antes do interrogatório. O sangue coagulado das vestes se misturava ao sangue novo que corria do nariz, supercílio e outros lugares. As fezes que lhe cobriam o corpo e as roupas já haviam ressecado, mas mesmo assim o cheiro era forte, umedecidas que ficavam pelo suor e sangue.

Sangue suor e fezes.

Sentei e iniciei uma tentativa de abrir um canal de diálogo.

--- Puta que pariu. Mas tu fede mesmo, hein? Tu é uma coisa escrota, que foi cagada pra vir ao mundo. Não vai falar, bichona? To mandando abrir a boca e começar a soltar a língua, eu sou a autoridade aqui, ta entendendo?

O sujeito parecia louco. Girava os olhos, se babava, ria, chorava e não parava um minuto de repetir o estranho mantra. Ao perceber que eu me colocava junto a ele como interlocutor, arregalou os olhos, e encarou-me, por uma profundidade de tempo de cinco segundos que pareceram eterno silêncio e alívio. Abriu a boca, soltando um gemido agudo, e disse:

--- Sangue suor e fezes e sangue e suor e fezes...

--- Porra! Cala a merda da tua boca e começa a falar, ta ouvindo. Cala a boca e começa a contar tudo, antes que eu mande trazer uma bichona da cela pra te comer agora mesmo.

O sujeito começou a chorar de novo, ainda repetindo o mantra místico da seita de assassinos a que pertencia. Eu estava começando a ficar impaciente. Mais claro eu não podia ter sido, mandara o sujeito ficar em silêncio e contar tudo, como poderia não estar entendendo? Será que ele achava que eu era uma farsa. Saberia ele que eu colara no exame de admissão? Não podia ser, era algo que nem para meu cachorro eu falara. Não que eu seja paranóico, não me entendam mal, confio no meu cachorro e daria a vida por ele, mas é bom não dar bobeira, sabe como é.

Comecei a lembrar de todas as vezes em que eu, ainda criança, me achara numa situação daquelas. Porra, é foda. Eu era a autoridade, eu tinha os poderes ali investidos. Como ele poderia se calar? Eu precisava recorrer ao serviço de inteligência.

Chamei o detetive Pestana, que me atendeu prontamente, trazendo o formulário do meliante. Ali constava que dera entrada na delegacia depois de ser pego na entrada do hospital. Que no prontuário que o acompanhava da ambulância para a emergência constava que o sujeito comprava porcos em uma fazenda e caíra no chiqueiro logo antes do horário de alimentação dos bichos, que lhe haviam dados mai de uma centena de mordidas enquanto se arrastava nas fezes dos animais tentando se libertar, quando entrou em profundo estado de choque.

Baboseira. Os policiais de plantão no hospital prontamente suspeitaram do sujeito quando viram os enfermeiros o trazendo e o prenderam na hora, mesmo sob protestos dos médicos. Esses médicos comunas. Agora estavam ali fora da DP querendo explicações e alegando que iriam entrar na justiça, malditos juízes comunas, conspiravam todos juntos.

Sangue suor e fezes e sangue suor e fezes. O sujeito continuava lá, olhando pra parede e se fingindo de louco. Conhecia o tipo, a seita já fizera lavagem cerebral nele, esse não abria o bico. Chamei o delegado Mourão e informei:

--- Não adianta delegado, esse não vai confessar. Vamos ter que fuzilar mais um.

O delegado agradeceu amavelmente meu empenho e fez um gesto de cabeça para dois policiais que aguardavam. Eles entraram na sala. Quatro tiros se ouviram. Finalmente tudo voltou ao silêncio.


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