Minha fome
Ainda consigo me lembrar do período em que
estive morto. Fazia frio. Chovia. O sol nunca clareava o dia e
por dois anos fiquei me arrastando em pijamas dentro de casa, a
maior parte do tempo na cama.
Acordava assustado. O prenúncio de minha
morte já tinha vindo no ano anterior e agora eu sabia que havia
se confirmado. O telefone tocava muito, principalmente nas manhãs. Eu me encolhia de medo na
cama e esperava pra saber se alguém deixaria um recado na secretária
eletrônica. Depois dormia novamente.
Somente às seis horas meu organismo me reagia e me
impulsionava pra fora de meu caixão. Uma dor forte no abdômem sempre
aparecia quando eu ficava mais de doze horas sem comer ou beber. Eu me
esgueirava até o bar e comprava uma vodka, ou vinho barato, qualquer
coisa que me fizesse suportar o infernal frio e umidade dessa ilha.
Eu me cortava todo dia com uma gilete. Nada dos cortes que se
vê no cinema, apenas um arranhãozinho superficial suficiente apenas
para fazer brotar algum sangue. Eu precisava daquele colorido, daquele
lembrete vermelho de que eu ainda não estava pronto para a morte. E
assim um dia depois do outro, eu era um morto que sangrava e seguia em
frente. Um tanto dinâmico para um morto, confesso, mas minha morte era
pior do que aquelas em que o corpo permanece inerte.
Eu tinha quinze anos quando comecei a morrer. Sendo ateu eu
sabia que minha imortalidade só poderia existir de duas formas: uma,
biológica, tendo um filho, a outra mental, escrevendo um livro.
Plantar árvores não era comigo. Foi então que comecei a ficar obcecado
por essas duas idéias. Por cinco anos tentei, e tudo que consegui foi
descobrir minha inépcia tanto em arranjar mulher quanto em escrever
algo minimamente bom. Então morri. Me recolhi recluso aos vinte anos
em meu apartamento, e só saia para comprar bebida e voltar. O processo
de morrer era doloroso e a bebida ajudava a anestesiar.
Sentia muita fome por essa época. Foi aí que comecei a
formular a teoria da fome. A fome era a necessidade básica vital a ser
preenchida e, enquanto eu, me esvaziava, insaciada que estava minha
fome por mulheres, eu via por aí a opulência de barrigas recheadas de
cachorros quentes e camas freqüentadas por mulheres.
Não me entenda mal, caro leitor. Minha incompetência nunca foi
tão grande a ponto de nunca ter conseguido uma mulher sequer. Madalena
realmente me amara, até que caíra fora assustada com o meu
comportamento. Portanto este que agora morre não volta ao pó virgem
como veio, mas o um mês que passei com Madalena não foi suficiente
para lhe semear um filho.
A fome me secava, me matava, agonizava. Me instilava o ódio
pelas pessoas esnobes e me sussurrava no ouvido minha missão final. Eu
devia repartir com o mundo minha fome, generalizá-la, levá-la até as
pessoas que não a conheciam.
À noite, depois de acabada a garrafa de vodka, eu saía. Às
vezes matava uma mulher casada, às vezes uma criança gorducha. E dois
anos fazendo isso, mas nada parecia ter mudado. Foi portanto só agora,
aos vinte e dois, que entendi o que fazer e que voltei a viver.
Voltei a perseguir Madalena. Depois de me deixar ela tinha ido
para indaial para se ver longe de mim. Ela havia voltado pegando um
emprego na capital e nem lembrava mais de mim, do meu rosto, da minha
raiva, daquilo que eu costumava fazer com ela. Principalmente, ela não
sabia que eu já a descobrira de volta na cidade.
Estou seguindo ela há muito tempo. Aprendi os horários, os
locais, tudo que ela faz. Ela come demais, isso não é certo. Toma café
da manhã ao acordar, faz um lanche de manhã no serviço, almoça num
restaurante do centro subindo a escada depois de uma porta estreita da
conselheiro mafra. Volta ao serviço, faz outro lanche, e mais outro
quando sai. A noite janta e mais um lanche antes de dormir. Isso não
era certo.
Foi quando ela saía de manhã cedo pro trabalho que lhe bati
com força na nuca para desacordar. Ela tonteou somente e tive que
bater de novo e de novo, até que desmaiasse. Tive medo que ela
morresse ali, isso estragaria tudo. Levei-a pra casa e a amarrei.
Amordacei. Tratei o ferimento, esperei que ela acordasse.
Ela não me reconheceu. No primeiro dia se debateu bastante e
tentou gritar. Depois do primeiro dia sem comer a fome a fez mais doce
e ela desmaiou. No segundo dia, aproveitando o sono entorpecido que
ela experimentava, desamarrei ela, despi ela, amarrei novamente e só
então tirei a mordaça.
Ela ficou desesperada quando acordou e se viu amarrada nua.
Suplicou que eu não fizesse nada, que ela pagaria quanto eu quisesse,
que a soltasse. Falei para não se preocupar. Deixei uma travessa com
água num banco ao lado dela e falei que sempre que quisesse beber
poderia usar os canudos que ali estavam. Que se ela começasse a gritar
eu teria que amordaça-la novamente e só beberia água quando eu pudesse
lhe servir. Ela reclamou de frio, e estava muito frio. Chovia miúdo lá
fora. Fiz que não a ouvi.
No anoitecer do segundo dia ela se desesperou e começou a
gritar, o que me obrigou a amordaçá-la de novo. Nenhum vizinho ouviu
nada, por sorte, eu precisava ser mais cuidadoso.
No terceiro dia o estado dela já começava a parecer
lastimável. Ela não conseguira se agüentar e mixara no chão na
véspera, e era sobre a urina gelada que ela estava agora amarrada. Me
apiedei dela, sequei o local e dei a ela um cobertor. Só então me
pediu por comida. Sinto muito, não posso, foi minha resposta.
Ela começou a chorar e aquilo realmente me fazia sentir muita
pena. Falei que não se preocupasse, que era eu que estava ali, revelei
quem eu era. Ela pareceu mais desesperada ainda depois disso e me
perguntava, por que, por que? A insistência dela me incomodava e a
amordacei de novo.
Resolvi não desamordaçá-la mais. Eu também não saía de casa
nem comia a quatro dias. Estava muito fraco e ela poderia usar de
minha fraqueza para fugir. Só me limitava a obrigá-la a beber água e
depois secar a água que eu derramava nela. No quarto dia eu achei que
ela não acordaria mais, passou a maior parte do tempo desmaiada. Eu
também já desmaiava com freqüência, mas ao menos a fome não doía mais
o estômago. O intestino parecia haver secado e parei de precisar
evacuar.
Já estamos no décimo quinto dia e acho que ela morreu. Me
arrastei até ela com dificuldade, meus braços e pernas estão fracos, a
vista me causa dificuldade e é também difícil respirar. Em duas
semanas ela emagreceu muito, a pela se gruda ao osso. Ela não respira
e nos pontos em que a corda a prende a pele está marcada, embora agora
muito mais frouxa do que quando eu a prendera. Esqueci-me de apertar a
corda todos os dias para compensar o diminuimento dela, mas no fim ela
estava tão fraca que mesmo que estivesse sem corda não poderia fugir.
Revi uma série de defeitos e falhas no meu plano, que felizmente, não
acabaram me atrapalhando.
Minhas roupas também estão folgadas. Às vezes ainda penso num
prato de comida ou penso como teria sido se eu tivesse tentado falar
mais com ela antes. Talvez se eu tivesse ao menos por um minuto
penetrado nela como fazia nos velhos tempos eu teria desistido de
tudo. Embora eu ansiasse por isso mais que tudo minha disciplina
conseguiu me impor a renúncia.
Eu agira certo nisso, e minha recompensa se achava no sucesso.
Madalena conhecera a fome, a fome que por tanto tempo me atormentara.
Madalena morrera com a fome, a mesma fome que me fizera morrer por
vários anos, até que conseguisse voltar a um pouco de vida. Vida que
agora se extinguia também em mim, e eu sentia pelas dores, pelos
formigamentos e pelos delírios que eu morreria também esta noite.
Talvez a fome e o frio misturados, mas principalmente por causa da
fome. Mas Madalena já morrera, e agora sim eu podia morrer, minha
missão no mundo da vida estava completa.
Senti o torpor final que me levou ao desmaio. E o desmaio
levou ao fracasso dos músculos abdominais e do aparelho respiratório.
E o fracasso do músculos me levou à morte. Morri em paz.
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