Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Minha fome

Ainda consigo me lembrar do período em que estive morto. Fazia frio. Chovia. O sol nunca clareava o dia e por dois anos fiquei me arrastando em pijamas dentro de casa, a maior parte do tempo na cama.

Acordava assustado. O prenúncio de minha morte já tinha vindo no ano anterior e agora eu sabia que havia se confirmado. O telefone tocava muito, principalmente nas manhãs. Eu me encolhia de medo na cama e esperava pra saber se alguém deixaria um recado na secretária eletrônica. Depois dormia novamente.

Somente às seis horas meu organismo me reagia e me impulsionava pra fora de meu caixão. Uma dor forte no abdômem sempre aparecia quando eu ficava mais de doze horas sem comer ou beber. Eu me esgueirava até o bar e comprava uma vodka, ou vinho barato, qualquer coisa que me fizesse suportar o infernal frio e umidade dessa ilha.

Eu me cortava todo dia com uma gilete. Nada dos cortes que se vê no cinema, apenas um arranhãozinho superficial suficiente apenas para fazer brotar algum sangue. Eu precisava daquele colorido, daquele lembrete vermelho de que eu ainda não estava pronto para a morte. E assim um dia depois do outro, eu era um morto que sangrava e seguia em frente. Um tanto dinâmico para um morto, confesso, mas minha morte era pior do que aquelas em que o corpo permanece inerte.

Eu tinha quinze anos quando comecei a morrer. Sendo ateu eu sabia que minha imortalidade só poderia existir de duas formas: uma, biológica, tendo um filho, a outra mental, escrevendo um livro. Plantar árvores não era comigo. Foi então que comecei a ficar obcecado por essas duas idéias. Por cinco anos tentei, e tudo que consegui foi descobrir minha inépcia tanto em arranjar mulher quanto em escrever algo minimamente bom. Então morri. Me recolhi recluso aos vinte anos em meu apartamento, e só saia para comprar bebida e voltar. O processo de morrer era doloroso e a bebida ajudava a anestesiar.

Sentia muita fome por essa época. Foi aí que comecei a formular a teoria da fome. A fome era a necessidade básica vital a ser preenchida e, enquanto eu, me esvaziava, insaciada que estava minha fome por mulheres, eu via por aí a opulência de barrigas recheadas de cachorros quentes e camas freqüentadas por mulheres.

Não me entenda mal, caro leitor. Minha incompetência nunca foi tão grande a ponto de nunca ter conseguido uma mulher sequer. Madalena realmente me amara, até que caíra fora assustada com o meu comportamento. Portanto este que agora morre não volta ao pó virgem como veio, mas o um mês que passei com Madalena não foi suficiente para lhe semear um filho.

A fome me secava, me matava, agonizava. Me instilava o ódio pelas pessoas esnobes e me sussurrava no ouvido minha missão final. Eu devia repartir com o mundo minha fome, generalizá-la, levá-la até as pessoas que não a conheciam.

À noite, depois de acabada a garrafa de vodka, eu saía. Às vezes matava uma mulher casada, às vezes uma criança gorducha. E dois anos fazendo isso, mas nada parecia ter mudado. Foi portanto só agora, aos vinte e dois, que entendi o que fazer e que voltei a viver.

Voltei a perseguir Madalena. Depois de me deixar ela tinha ido para indaial para se ver longe de mim. Ela havia voltado pegando um emprego na capital e nem lembrava mais de mim, do meu rosto, da minha raiva, daquilo que eu costumava fazer com ela. Principalmente, ela não sabia que eu já a descobrira de volta na cidade.

Estou seguindo ela há muito tempo. Aprendi os horários, os locais, tudo que ela faz. Ela come demais, isso não é certo. Toma café da manhã ao acordar, faz um lanche de manhã no serviço, almoça num restaurante do centro subindo a escada depois de uma porta estreita da conselheiro mafra. Volta ao serviço, faz outro lanche, e mais outro quando sai. A noite janta e mais um lanche antes de dormir. Isso não era certo.

Foi quando ela saía de manhã cedo pro trabalho que lhe bati com força na nuca para desacordar. Ela tonteou somente e tive que bater de novo e de novo, até que desmaiasse. Tive medo que ela morresse ali, isso estragaria tudo. Levei-a pra casa e a amarrei. Amordacei. Tratei o ferimento, esperei que ela acordasse.

Ela não me reconheceu. No primeiro dia se debateu bastante e tentou gritar. Depois do primeiro dia sem comer a fome a fez mais doce e ela desmaiou. No segundo dia, aproveitando o sono entorpecido que ela experimentava, desamarrei ela, despi ela, amarrei novamente e só então tirei a mordaça.

Ela ficou desesperada quando acordou e se viu amarrada nua. Suplicou que eu não fizesse nada, que ela pagaria quanto eu quisesse, que a soltasse. Falei para não se preocupar. Deixei uma travessa com água num banco ao lado dela e falei que sempre que quisesse beber poderia usar os canudos que ali estavam. Que se ela começasse a gritar eu teria que amordaça-la novamente e só beberia água quando eu pudesse lhe servir. Ela reclamou de frio, e estava muito frio. Chovia miúdo lá fora. Fiz que não a ouvi.

No anoitecer do segundo dia ela se desesperou e começou a gritar, o que me obrigou a amordaçá-la de novo. Nenhum vizinho ouviu nada, por sorte, eu precisava ser mais cuidadoso.

No terceiro dia o estado dela já começava a parecer lastimável. Ela não conseguira se agüentar e mixara no chão na véspera, e era sobre a urina gelada que ela estava agora amarrada. Me apiedei dela, sequei o local e dei a ela um cobertor. Só então me pediu por comida. Sinto muito, não posso, foi minha resposta.

Ela começou a chorar e aquilo realmente me fazia sentir muita pena. Falei que não se preocupasse, que era eu que estava ali, revelei quem eu era. Ela pareceu mais desesperada ainda depois disso e me perguntava, por que, por que? A insistência dela me incomodava e a amordacei de novo.

Resolvi não desamordaçá-la mais. Eu também não saía de casa nem comia a quatro dias. Estava muito fraco e ela poderia usar de minha fraqueza para fugir. Só me limitava a obrigá-la a beber água e depois secar a água que eu derramava nela. No quarto dia eu achei que ela não acordaria mais, passou a maior parte do tempo desmaiada. Eu também já desmaiava com freqüência, mas ao menos a fome não doía mais o estômago. O intestino parecia haver secado e parei de precisar evacuar.

Já estamos no décimo quinto dia e acho que ela morreu. Me arrastei até ela com dificuldade, meus braços e pernas estão fracos, a vista me causa dificuldade e é também difícil respirar. Em duas semanas ela emagreceu muito, a pela se gruda ao osso. Ela não respira e nos pontos em que a corda a prende a pele está marcada, embora agora muito mais frouxa do que quando eu a prendera. Esqueci-me de apertar a corda todos os dias para compensar o diminuimento dela, mas no fim ela estava tão fraca que mesmo que estivesse sem corda não poderia fugir. Revi uma série de defeitos e falhas no meu plano, que felizmente, não acabaram me atrapalhando.

Minhas roupas também estão folgadas. Às vezes ainda penso num prato de comida ou penso como teria sido se eu tivesse tentado falar mais com ela antes. Talvez se eu tivesse ao menos por um minuto penetrado nela como fazia nos velhos tempos eu teria desistido de tudo. Embora eu ansiasse por isso mais que tudo minha disciplina conseguiu me impor a renúncia.

Eu agira certo nisso, e minha recompensa se achava no sucesso. Madalena conhecera a fome, a fome que por tanto tempo me atormentara. Madalena morrera com a fome, a mesma fome que me fizera morrer por vários anos, até que conseguisse voltar a um pouco de vida. Vida que agora se extinguia também em mim, e eu sentia pelas dores, pelos formigamentos e pelos delírios que eu morreria também esta noite. Talvez a fome e o frio misturados, mas principalmente por causa da fome. Mas Madalena já morrera, e agora sim eu podia morrer, minha missão no mundo da vida estava completa.

Senti o torpor final que me levou ao desmaio. E o desmaio levou ao fracasso dos músculos abdominais e do aparelho respiratório. E o fracasso do músculos me levou à morte. Morri em paz.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski