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Uma missão humanitária

Havia algo nele que o tornava um sujeito deprimente. Ninguém sabia precisar exatamente o que era, nem mesmo eu que o criara como personagem. O sujeito simplesmente chegava num ambiente, sentava e as pessoas iam aos poucos parando de falar, parando de sorrir, ficando cansadas. Logo qualquer festa parecia um enterro.

Ele parecia ter consciência disso, embora tentasse guardar essa percepção num canto recluso e afastado de sua mente, para que isso não o perturbasse. Ia sempre no bar do Tanque, onde garotas nuas nadavam num enorme aquário, e sempre arruinava a noite. Certa vez o clima chegou a ficar tão pesado que uma das garotas nuas tentou deliberadamente se afogar, sem motivo aparente.

Em geral também ele era um tipo quieto, recluso. Quando puxavam papo ele simplesmente concordava com o que quer que dissessem, pegava sua bebida e mudava de lugar. Era algo indecifrável, se era uma espécie de tristeza ou melancolia, mas se podia notar que não era algo tão forte que o fizesse sofrer, nem algo que o permitisse se alegrar. Era sempre simplesmente o mesmo, como as águas que descem pela privada, correm pelos canos, chegam na fossa, desembocam no sistema de esgotos da cidade, vão para o tratamento, são despejadas no mar, evaporam, precipitam sobre os rios da cidade, são captadas e tratadas para consumo humano, bebidas, mijadas e logo estão novamente na privada descendo.

Sinceramente, uma vez tive nojo dele. Cheguei no bar do Tanque e lá estava ele, encostado no balcão, com sua cara de asquerosa ausência da capacidade de provocar impressões. Digo isso pois era em mim, e não na cara dele, que obviamente o asco estava se infiltrando e impregnando. Eu tinha que matá-lo.

Era isso. Agora que eu disse talvez seja mais fácil explicar porque eu estava correndo nu, na frente da agência bancária, às 3 horas da manhã, todo ensangüentado. Era inverno, logo eu não poderia alegar calor. E o cheiro doce do sangue jamais me permitiria clamar inocência. O plano não poderia ser mais perfeito. Eu sabia certinho o trajeto que ele fazia para chegar ao bar. Bastava esperá-lo embaixo da ponte e atacá-lo pelas costas, certo?

Mas eu não contava com a iminência de que eu teria que tocá-lo. Quando cerca de duas e meia da manhã ele passou pela ponte com seu passo monótono, saí das trevas que me escondiam e pulei sobre ele. Não me importavam as testemunhas, os carros que passavam, as pessoas que valorosamente desafiavam o frio para se embebedarem e alegrarem na rua, apenas uma morte, a dele, me vinha à cabeça como idéia fixa. Mas quando cravei-lhe nas costas a faca, brutalmente Brutus, e senti a pele de seu pescoço encostar em meu outro braço que o prendia, todo o nojo e asquerosidade e repugnância e náusea que dele emanavam me invadiram e sufocaram, como uma onda de carne podre, merda no ventilador, napalm no cú de iraquiano. Senti que a vida lhe escorria enquanto que aquela onda repugnante transbordava para mim.

Pois mais tolo que fosse, acreditei na hora que eu me tornaria um igual a ele. Que ele fosse de uma terrível raça mutante ou experimento socio-biológico, que teria me infectado e condenado à existência medíocre que ele levava.

Pulei na lagoa e comecei a arrancar a roupa, me lavar nas águas de esgoto que prali fluem dos bares, e arranhar e rasgar a pele, como se uma coceira insensível me atacasse.

Depois disso o desespero, a corrida naturista ensangüentada e meu recolhimento. Nunca em nenhum momento conheci remorso daquela ação, e se hoje vivem as pessoas num mundo melhor, agradeçam a mim.


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