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Desejo Secreto

Ter catorze anos em 1994 era um esforço ingrato. A escola era insuportável. Minha irmã de dez era insuportável. Os garotos da minha idade eram insuportáveis. Meus pais eram insuportáveis. A vida toda era um amontoado de insuportabilidades sem sentido.

Apenas os anos 90 pareciam ter algum sentido naqueles cenário anos 90. Nada mais importava, era como se o mundo tivesse acabado e ninguém notasse. Era como se a vida prosseguisse num vazio, sem que ninguém se desse conta. Adultos estavam desorientados, sem saber a que se apegar para fugir do vazio, mas quem era jovem sabia muito bem que não havia nada a que pudesse se apegar, havia apenas ódio a tudo.

Meus pais preenchiam o vazio de suas vidas com apelos ao passado. Ainda ontem meu pai chorava em casa pela morte de Bukowski, um dos escritores favoritos dele que morrera mês passado. Minha mãe dizia que Getúlio Vargas, ao se matar, prolongou na história dois tipos de nacionalismos: aquele que daria fôlego ao sonho trabalhista de vida melhor e dignidade para o povo e o nacionalismo fascista que seria responsável por exterminar o primeiro. Mas os anos 80 acabaram, e junto com eles aquele fascismo que ela tanto odiara. Estavam os dois perdidos, sem saber em que rumo ir.

Mas eu, que já não era criança, já tinha catorze anos, sabia que podia desafiá-los e vencê-los. Chamei meu pai de bicha velha e minha mãe de mulher submissa. Eu sabia que eles já não podiam mais me surrar como quando eu era criança. E eles também sabiam. E eu sabia que eles sabiam. Mas a reação que tiveram foi pior que se me surrassem, pois apenas começaram a chorar.

Minha vida toda eu chorara por causa deles, e agora, vendo-os chorar por minha causa, me enchia de um certo senso de vitória e um certo remorso.

Botei meu walkman e saí pra rua. Zanzar pelas ruas do centro era a única coisa que aliviava a dor de estar vivo. As ruas estavam vazias, era um sábado nublado e era um alívio saber que não encontraria ninguém pela frente.

No meu ouvido Kurt Cobain cantava uma de minhas favoritas. Um refrão que sempre soara como qualquer outro ressoara mais estranho que nunca. Era como se escutasse pela primeira vez aquela voz que vinha do túmulo que dizia: "não espere que eu morra por vocês".

Eu caíra em uma armadilha, e sabia que me afundava cada vez mais nela. Minha vida, era essa armadilha, viver num lugar que odiava, cercado de gente que odiava, sendo obrigado a ir a lugares que odiava e fazer coisas que odiava. Não havia niilismo nos anos 90, pois niilismo era os anos 90. E todas as coisas que me eram oferecidas eram recebidas igualmente com desprezo ou ódio. E na tevê um bando de cretinos se debruçava pra falar de bobagens sobre videogame e violência infantil sem entender o básico, de que a raiz daquele ódio era o ódio de ter que viver naquele mundo insuportável que havia sido criado para mim, para os da minha geração.

E era por isso que eu precisava tão desesperadamente de uma música que cantasse meu desespero. Cobain também havia caído em uma armadilha, assim como eu. Sua canção cantando o ódio àquilo tudo imediatamente tocou a quem tivesse os mesmos olhos de ver e o alçou ao seu pior pesadelo, virou estrela, usava como canal as mesmas porcarias de canais e o mercado que fazia as mesmas coisas podres que odiava. Ele se tornou seu próprio monstro, e sabia disso, e se odiava por isso. E eu também sabia que a armadilha dele era igual a minha, pois a minha armadilha também era a condenação de viver uma vida que eu não queria.

Era um dilema insolúvel. Não havia solução mágica. Sair daquela vida de dor era a única opção que eu teria. Só a morte poderia me aliviar de minhas dores e me fazer fugir dos anos 90, meus pais, família, escola. Só acabando com aquela vida que eu tinha eu poderia acabar com aquilo que eu odiava.

E fora isso que Cobain fizera, semana passada, com uma espingarda e um buraco na cabeça. O sofrimento que aquilo me relegara era algo que eu não poderia dividir com meus pais ou com aqueles que eu tanto odiava. Por anos eu pensara em fazer a mesma coisa e agora, vendo-o fazer o mesmo, senti rasgar uma dor tão intensa que vi que aquilo também não solucionaria o problema. Na aula de história levei um zero por ter escrito um texto relacionando Vargas a Cobain. Não importava, nada daquilo me importava realmente mais. Cobain estava morto, nada mais tinha sentido ou importância e isso só fazia os anos 90 se tornarem ainda mais anos 90.

Naquele sábado frio e nublado, pensando sobre meu próprio desejo de morrer, decidindo se vou ou fico, ouvindo brotar do túmulo aquelas estrofes, vi que a dor por aquela morte era diferente da dor que eu sentia normalmente. Paradoxalmente, a dor de estar vivo era aquela que me impelia ao desejo de morrer logo, enquanto que aquela dor mais forte pela morte dele me enchia de mais ódio e desespero e me impelia a ficar vivo. Não fazia sentido algum. Meu ódio realçado me fazia acirrar o desejo de que queria me livrar daquela escola, daqueles pais, daquela estrutura social, daqueles anos 90. Mas não queria me livrar de forma que eles se livrassem de mim. Agora eu os odiava mais, eu queria derrotá-los. Eu queria ser aquele a sobreviver no final sobre os escombros de tudo.

E foi aí que entendi que Cobain estava errado. Foi aí que percebi que ele mentira esse tempo todo quando disse que não morreria por mim. E embora a tevê culpasse a morte dele pelo uso de drogas, a mulher má, etc, eu sabia que ele se matara para que eu não precisasse fazer o mesmo, para que eu sobrevivesse e derrotasse, por fim, aquilo que eu odiava. Por isso, quando me perguntam por que ele fez aquilo, apenas respondo que foi por mim, e me retiro da roda de bate-papo como quem sabe que nunca foi mesmo bem-vindo naquele local.


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