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Esperando Janice

Olhar perdido na xícara de café, eu tentava compreender Nietzsche. Lá no fundo, um Rock anos setenta a todo volume, nunca parecendo alto o suficiente. O som alto era distante, assim como o vapor e o aroma que subia da xícara para meu rosto. Um fundo de café preto, sem açúcar. E bem no meio, um ponto que parecia mais preto que os demais, o infinito, a própria essência do café e da música que tocava, o abismo que me olhava, que entrava em mim, me enchia de idéias.

A campanhia tocou, me despertando. Eu sabia quem era, só não havia feito ainda a decisão, devia ou não matá-la? Olhei uma vez mais procurando o abismo na xícara de café, que segundos antes eu vislumbrara. Se fora. Só o que restava era o café já consideravelmente frio agora. A campanhia voltou a tocar, insistente, fazendo com que eu finalmente me levantasse e fosse até a porta.

--- Oi Anaca.

Foi tudo que Janice disse antes de entrar e ir me beijando logo, sem cerimônias. Fechei a porta enquanto a beijava ao mesmo tempo em que me perguntava porque diabos era tudo tão difícil, tão confuso.

Uma parte minha, cartesiana, dizia que eu a amava. Uma parte apolínia dizia que eu devia escrever, mulher era secundário, só servia se me ajudasse a escrever ou, ao menos, não atrapalhasse. A parte dionisíaca, por fim, me lembrava que a dor e o prazer são indissociáveis, e que o tão mais que a amo, tão mais bela será a dor em perdê-la, em matá-la.

Desviei o pensamento, estava já chegando a uma conclusão que precisava de mais tempo pra ser tomada. Janice estava ali agora e eu precisava decidir o que fazer com ela. Escorreguei a boca que a beijava para o pescoço dela, ela gostava disso, e enquanto a beijava ali contemplei minha estante. Não me leve a mal no que vou dizer agora, entendam, sou um cético até a morte, mas uma força irresistível parecia chamar a atenção para dois livros à esquerda que há muito tempo eu lera e pareciam ligeiramente desarrumados. Eram a Morte de Danton, de Büchner, e O assassinato como uma das belas-artes, de Thomas de Quincey.

A consciência súbita daqueles volumes me tomou de um pânico, que dissimulei num tremor. O que significava isso tudo? O mundo inteiro conspirava e me empurrava numa direção única, como se tudo estivesse já planejado.

Havia lâminas de barbear soltas espalhadas em minha gaveta. Havia uma tesoura afiada na cozinha. Haviam as facas. Venenos para insetos.

--- Que cara é essa??

--- Ahn, nada meu amor, nada --- sorri nervoso --- você sabe que te amo, não?

--- Tolo...

Abracei-a e comecei de novo a beijá-la. Ela desconfiava de algo, certamente desconfiava. Quanto tempo mais demoraria até ir à polícia? Talvez já tivesse ido...

Deslizei minha mão pelo corpo dela, sentindo com atenção cada espaço, cada detalhe, cada dobra de roupa que pudesse ser um microfone ou fio. Você está ficando paranóico, uma voz dentro de mim acusou, precisa acabar com isso logo.

Janice parou, de repente, olhou pra mim, com um sorriso em seu rosto que eu nunca notara antes, olhos brilhando, como se pela primeira vez viva, e disse:

--- Eu também te amo, meu amor!

Assim, de súbito, sem mais nem menos. Janice, que sempre fora fria e desinteressada. Janice, que parecia não amar ou se importar com ninguém. Janice, que jamais era capaz de ser afetuosa, mesmo quando alguém mais precisasse. Janice, que fazia questão sempre de deixar claro que só queria fuder, nada de amor. Pois essa mesma Janice agora, de uma hora pra outra, como que transformada, abandona a postura fria e distanciada que sempre reservara, e com um olhar de mil desejos e paixão infinita lança pra mim de volta a frase, como numa resposta que há muito tempo eu desistira de ter.

Esqueci tudo. Todas as tolices e loucuras de minha mente, todos pensamentos sinistros, todas as idéias de matá-la. Janice, com essa única frase, esvaziara de mim todo o medo e loucura para brilhar sobre mim com sua grandiosidade. Sim, eu a amava, isso era claro e transparente pra mim agora, e ela também me amava.

Todas essas coisas passaram em minha mente em poucos segundos, materializando-se num largo sorriso, que logo deformou-se e transformou-se numa careta horrível de dor, seguida de uivos e dor sufocante, assim que senti penetrando fundo em minhas costas, passando pela pele, costelas, chegando finalmente ao pulmão, o frio punhal que Janice trouxera oculto e cravava agora em mim, trazendo finalmente a morte.


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