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Em busca de um fim

Fúria é algo que não se despreza, é algo que se aumenta, com o tempo. É como um filho que levamos amorosamente para passear, para vê-lo crescer e tornar-se gigante.

Uma porta. Era tudo que me separava do destino. Se eu imaginasse um jeito de transpor aquela porta que se mostrava fechada pra mim, bastaria derramar o veneno na água da geladeira e cair fora antes que meu inimigo voltasse. Por cinco dias eu planejava cada detalhe daquele plano, como conseguir o veneno, como entrar e sair do prédio, mas a porta, a coisa mais simples de tudo, permanecia pra mim um mistério.

Talvez devesse matá-lo na escada. Não, muito barulho, os vizinhos ouviriam. A morte não só deveria recair sobre meu inimigo, mas também de forma rápida e silenciosa. Uma arma com silenciador daria conta, se isso não fosse pra mim uma inacessível peça de filmes. E eu nem atirar sabia.

Sentia a excitação na boca. A beleza da morte consiste em sua unicidade, tal qual o nascimento. A morte é a única certeza que temos, é nosso desejo secreto, nosso instinto primeiro. Quantas mortes maravilhosas a humanidade não podia se gabar de ter inventado: bruxas nas fogueiras, cidades incendiadas, pestes generalizadas, crianças de ruas, bombas de destruição em massa, sejam atômicas ou químicas, baionetas, estrangulamentos... veneno.

Ouvi passos na escada, talvez fosse ele, meu inimigo. Subi mais um lance de escadas e me sentei nos degraus, observando. Uma velhinha subia com suas compras. Assim que se foi, retornei ao meu posto.

Fui até a porta. Girei o trinco, chequei bem. Estava fechada. Talvez eu devesse esperar seu retorno, para só então penetrar no lar e matá-lo. Mas, e se houvesse luta? Se atraísse a atenção dos vizinhos. Eu não podia me arriscar, não podia ser descoberto. Sua morte tinha que parecer acidental, pois a mera suposição de assassinato faria com que as suspeitas recaíssem sobre mim. Se ao menos fosse casa, não apartamento... tudo mais fácil. Menos barulho para chamar atenção dos vizinhos, além da oportunidade de se pôr um carro na garagem para assim levar o corpo embora.

Barulho novamente. Me escondo e o observo chegando. É ele, meu inimigo em pessoa. Vem sozinho e entra em casa, deixando a porta destrancada. A ansiedade começa a falar mais alto que a razão, e decido que essa é a hora de fazer a coisa. Recém anoiteceu. Aguardo dez minutos. Suando frio vou até a porta, giro a maçaneta e entro.

Estou com sorte. O barulho de água me denuncia o chuveiro ligado. Tranco a porta, para evitar intrusos. Fecho silenciosamente a cortina da sala. Procuro o quadro de fusíveis, e encontro-o na cozinho. Acho uma faca. Desligo a chave geral e me posto atrás da porta.

Um grito. No escuro ouço a torneira se fechar, resmungos e blasfêmias. A porta do banheiro se abre e pelo corredor vem meu inimigo, outro ser humano como eu, resmungando e rastejando em suas duas patas, até a cozinha onde estou. Um ser humano com eu que porém deixou pra trás toda sua humanidade. Que perdeu na infância o pouco de humano com que nascera, e que de sua maldade e infâmia fizera sua lei. E da força fizera sua expressão mais vil ao seu ódio pela humanidade. E com toda sua força, seu ódio, sua maldade e infâmia, matara a quem um dia dera sentido ao meu mundo e alento a minha vida.

O ser, meu inimigo, o monstro humano... ao entrar na cozinha, descalço e molhado, sente na nuca a faca que lhe cravo. O sangue corre e jorra, suja minhas roupas. Segue-se uma luta que logo termina com sua derrota, devido a fraqueza da perda de sangue.

Uma vez louco, parto sua carne em pedaços, com raiva, força e todo ódio que pode haver no mundo, sabendo que isso deve ser feito antes que a carne esfrie e endureça. Corto seus membros, arranco seus órgãos, ensacando e empilhando tudo. Quebro por fim os ossos maiores e desmembro coluna, cabeça e membros.

Religo a eletricidade. Estou ensangüentado. Estamos, a cozinha e eu. Vou ao quarto. Acho uma roupa que me sirva e uma mala grande. Ponho minhas roupas e os pedaços do corpo dentro da mala, lavo o chão ensangüentado bastante, até a exaustão. E uma vez passada a raiva estou exausto. Exausto, com um sentimento de tranqüilidade e a consciência da necessidade de raciocínio frio e rápido agora. Cansaço.

Ponho também os panos da limpeza na mala. Tudo limpo agora, nem cheiro de sangue. No fundo de mim, alguma coisa dói como se necessitasse de um repouso de mil anos. Todos os músculos doem, agora que não mais são necessários. Ponho a roupa limpa que um dia pertencera ao meu inimigo. Fecho a mala. Apago as luzes, descanso na sala da casa daquele que um dia fora meu inimigo. Estou tenso de novo, à espera, mas a sensação de alívio é maior e quase durmo.

À meia e meia me levanto. Impaciente, decido sair logo dali. Já deu tempo o suficiente para fugir do fluxo maior de pessoas na rua e no prédio. Além do mais, se algum vizinho ouviu algum barulho, à essa altura já desistiu de bisbilhotar. Levanto a mala pesada. Abro a porta, encarando o vazio que me espera. Sempre com o cuidado de não deixar digitais em lugar algum da casa, pego as chaves, fecho a porta, tranco por fora e, escorregando para meu bolso o grande volume de chaves, saio para a rua, carregando com zelo a grande mala e o alívio, que tanto esforço e dedicação me custaram.


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