Passeio noturno
Ela parou, confusa, hesitante, suada. Ou seria ele? Já não lembrava mais, não conseguia mais se distingüir em sua própria memória. Levou a mão até o órgão genital e certificou-se. Sim, ela era ela.
Os cabelos loiros curtos caíam-lhe na cara e ouvia, atrás de si, a respiração ofegante daquele homem que cambaleava e mancava em sua direção. Nada fazia sentido. Por uma fração de segundo quase viu sua memória, ou algo muito semelhante a um fragmento de coerência, voltar-lhe. Porém dissolveu-se no ar, misturado à chuva morna que caía.
Um garoto jogava video-game. Por favor, me ajude, estou perdida! O garoto olhou-a brevemente para então retornar o olhar à sua tela. Ajude-me, socorro, estou mesmo perdida! O garoto olhou novamente. Desta vez corou e, baixando a cabeça envergonhado, balbuciou: eu também!
Atrás de si o barulho aumentava, havia pouco tempo. Pegou o garoto pela mão e saíram correndo. Desceram as escadas na escuridão interminável até que por fim chegaram a uma porta. Você tem um Real garoto? Um-hum, aqui.
Pegou a moeda e introduziu-a na entrada de dinheiro. A porta destravou-se e abriu. Agora fuja garoto! Sussurrou-lhe isso no ouvido e saiu correndo, sem perder tempo em olhar pra trás para enxergar o garoto que gritava, parado na porta, aterrorizado, antevendo a morte.
Na rua uma multidão de pessoas e seres se amontoava, acotovelava e seguia seu caminho, lutando por um pouco de espaço. Chovia ali também, mas estava ainda mais quente. Para onde ir? Quem tornar-se? Que lugar era aquele?
Saiu correndo. Precisava fugir. Mas de quem? Do quê? Não lembrava-se mais. A degeneração avançava cada vez mais rápida agora. Por quanto minutos será que estava conseguindo reter informações na memória ainda?
Começou a pensar no número dois e disparou o cronômetro. Ao mesmo tempo corria, fugia pra longe. Dois, dois, dois, dois... quando sentiu que estava prestes a esquecer o número olhou novamente o cronômetro. Um número sem sentido corria o visor. Parecia estar marcando algo ou medindo um tempo, mas o que seria?
Passava agora por uma ponte. Uma ponte imensa em cima de um rio cujas proporções pareciam descomunais. Começou a engasgar-se e a cuspir sangue. Socorro! Socorro, me ajudem! Eu acho que estou morrendo!
Uma pessoa parou para amparar-lhe. Ela deixou-se apoiar o corpo na pessoa, agradecida, quando o velho arrancou-lhe então a bolsa das mãos e empurrou-lhe ao chão. Misturou-se à multidão e se foi, tão etéreo quanto chegara.
O que estava acontecendo? Por que estava morrendo? Olhou suas mãos e tentou compreender. Não conseguia. Parecia jovem, suas mãos pareciam jovens. Haveria já transado? Haveria sido feliz? Desfrutara sua vida um dia ou tudo fora sempre aquele caos ondulante que a sufocava agora, em pleno asfalto urbano?
A visão turvava e, em delírios, pareceu ver uma multidão cercá-la e observá-la. Aplaudiriam quando ela morresse? Teria ela vivido mais ou menos que eles? Era viver uma vida o destino de todos? Delírios? Realidade? Realidades?
Um oficial chegou dando-lhe enfim um tiro na cabeça. A multidão dividiu seus pertences e novamente se pôs a andar. Um homem veio, catou o corpo desnudo, colocou-o nas costas e levou-o. A última gota de sangue por fim escorreu pelo asfalto pingando no rio, que corria com a força e fúria do seu imensurável volume de águas.
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