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Felicidade

Eu juro, já fui feliz! Embora não saiba quando, como, ou se realmente foi realidade, todo dia sinto essa espécie de frio que me percorre a espinha, gelando meus sentidos até o fundo, como um imenso e opaco poço.

É uma sensação estranha, indefinível... uma espécie de tristeza, ou alegria, muito profunda, que sobre mim se abate até levar-me à imobilidade. É uma espécie de saudade ou nostalgia embutida. Saudades de tempos que, provavelmente, nem sequer vivi.

Não sei quem sou... à propósito, nem daonde vim. Sei meu nome, minha foto, meus pais, vizinhos, amigos, mas nunca, nunca consigo saber quem, afinal, eu sou. Pra piorar tudo, começaram , de uns tempos pra cá, essas memórias, que me assaltam no meio da rua, me fazem prisioneiro de um passado que, eu sei, não vivi, mas que me lembro de cada momento, cada detalhe, com toda a força que a saudade incontida pode gerar.

Estou eu andando, no meio da rua, quando começa de novo a brotar em mim tal sentimento. Corre uma lágrima de meu olho e fere-me tanto a emoção que se torna obrigatória minha parada num canto, apoiado num poste, convulsivamente a chorar. Vem-me, então a lembrança, que eu sei, eu juro, ser falsa, de um tempo de felicidade.

Deslizo suavemente sobre o asfalto, sentado confortável no banco de minha moto. A pista é macia e livre, sem um único carro em qualquer sentido, somente eu, a moto, e a moça no banco, atrás de mim. Por baixo de meu casaco, couro preto, sinto as mãos delicadas deslizando, e o corpo colado, abraçado ao meu, dizendo com isso, corporealmente, que confia em mim. A velocidade aumenta mas eu sei, pelo abraço mais apertado, que a moça atrás de mim nada teme, pois confia sua vida à minha habilidade, à minha prudência, ao meu amor. E eu, por vez, sei que posso correr cada vez mais rápido, mais livremente, mais confiante, pois a moça que amo está aqui, com o corpo colado ao meu, me sorrindo com os braços e as pernas, colando, suavemente, seus lábios em minhas costas, por cima da roupa, do espesso casaco de couro.

Choro então novamente, impotente ante tal lembrança, que me assalta assim alguns dias, sem explicação, sem origem, sem nenhum fundo de verdade que possa me dar a mais remota esperança de que o tenha um dia acontecido.

Lembro minha infância, adolescência, a mocidade e toda a fase adulta de minha vida e sei, de absoluto, que em nenhum momento vivi tal episódio ou teria tido a benção de sentir tal felicidade.

De resto, as memórias que consigo puxar da cabeça, as memórias reais, mostram sempre sua cara horrível, triste e distante dessa realidade que tanto quisera eu que houvesse ocorrido. Lembro-me da infância, dez anos... eu andava com meu pai e via nessa loja uma barra de chocolate. Eu fora sempre doido por chocolate. Começo então a chorar na rua, implorando a meu pai pelo chocolate. Chego em casa com o olho roxo, da surra que levara de meu pai. Conto a minha mãe, último reduto da criança, que me manda de castigo, por ter sido mal-criado. Aquela noite meus pais fizeram sexo por horas, como há muito tempo não faziam. Trancado no quarto eu ouvia tudo e chorava... não era justo, não podia ser. Não era Édipo que derrotava Laio na luta para depois comer Jocasta, e não vice-versa?

Na adolescência, a namorada que chegara e me contara sobre seu colega de trabalho, que a aconselhara a me deixar. "Que bom que não o fez" limitei-me a dizer. Vi que me observava e travava em si uma luta interna sobre a decisão que devia tomar, e não achava eu justo intervir nesse processo. Essa era uma decisão que ela devia tomar, pois de liberdade vivia o amor, assim eu acreditava. Não foi surpresa nenhuma quando na semana seguinte ela já tinha terminado comigo e começado com o cara. Eu sabia, ele sabia, só ela é que não via que isso iria acontecer, infelizmente a única que poderia tê-lo evitado, se quisesse.

Quando adulto, a paixão ardente e já madura. A mulher, infelizmente, era casada, e fiz questão, mesmo a contragosto dela, de respeitar-lhe a honra. A troca de visitas, gentilezas e olhares, era diária, constante e incessante. Mesmo assim nosso amor limitava-se a um leve roçar casual entre os tecidos das roupas, ou de meus lábios em suas faces. Tornou-se viúva e veio procurar-me. Respeitei o luto, que duraria um mês. Por que terei somente eu me surpreendido quando em menos de um mês ela havia já tomado outro pra si, com quem viveu até a morte?

Não! Definitivamente aquelas lembranças de felicidade que me invadem tão ferozmente nesses dias ensolarados, de verão do sul, não são minhas! Devem ser de outrém, de quem peguei sem querer um dia no ônibus, ou de algum filme ou livro que li. Porém lembro cada aroma, cada detalhe, cada gesto, cada contato, com impressionante detalhismo e nitidez, que a saudade intensa e amarga desses dias inexistentes me fazem tremer, de cima à baixo, e, num espasmo final, sentir um estalo na memória, que faz subir das entranhas até os lábios o nome dessa, a quem tanto amei, e ainda hoje acredito amar, para então, de súbito morrer, diluir, desfazer-se o som justo no momento em que deveria chegar aos lábios e surgir para o mundo.

Sento-me então na calçada, não suja, imunda, por onde passam as pessoas a olhar-me. E sacudindo negativamente a cabeça prosseguem seu caminho, amaldiçoando-me e reclamando da bagunça em que se transformaram as ruas nestes dias de hoje. Abraço meus joelhos e sufoco meu choro, soluçando baixinho, tremendo de frio, embora seja verão e o termômetro, plantado ao meu lado na calçada, sussurre maldosamente a temperatura de trinta e oito graus.

Aos poucos esvainesce a lembrança, deixando-me, novamente, apenas a saudade terrível e opressiva desses dias inexistentes. Meu momentos únicos de felicidade que nunca ocorreram em minha vida, mas quem sabe poderiam ter ocorrido. Ergo-me lentamente, juntando meus pedaços espalhados pelo chão. Amanhã começa de novo o dia, de novo o trabalho, a solidão, a angústia e a memória, a saudade desse dia que, talvez, nunca existiu.


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